Arte e Ativismo, Eventos
Chaos Communication Camp
09/11/2015
Por Lucas Teixeira | #Boletim12
O Chaos Communication Camp é o maior acampamento hacker do mundo. A Wikipedia o descreve como “um encontro internacional de hackers que acontece a cada quatro anos, organizado pelo Chaos Computer Club (CCC)”. De acordo com o próprio site do evento é “um evento internacional, de cinco dias, a céu aberto, para hackers e formas de vida associadas”. A equipe da Oficina Antivigilância esteve lá, e contamos aqui um pouco do que é possível descrever sobre essa experiência única.
Chaos Computer Club
O clube, fundado em 1981 em Berlim, é uma associação de pessoas interessadas nas interseções e interações entre liberdade de expressão, transparência, cultura livre e os meios digitais de comunicação e colaboração.
Todo ano, entre o natal e o ano novo, o CCC organiza o Chaos Communication Congress. O evento é um dos palcos principais do debate sobre vigilância e criptografia bem antes de Edward Snowden sequer trabalhar para a inteligência — em 1994, por exemplo, o motto do perguntava “O Big Business está te vigiando?!”. O 30C3, primeiro após as revelações que Snowden nos trouxe, contou com um keynote do jornalista Glenn Greenwald e com a apresentação do catálogo de ferramentas de invasão e interceptação da Tailored Access Operations, a equipe da NSA que provê ferramentas de invasão especializadas para analistas da agência que tenham um alvo específico difícil de lidar com as ferramentas que possui.
Chaos Computer Club em Hamburgo, 2013
O CCC também é conhecido por descobrir e divulgar falhas de segurança em sistemas bancários e biométricos, na internet e em redes de telefonia. Em 2008, o clube conseguiu e publicou as impressões digitais do ministro do interior da Alemanha, como um protesto aos sistemas biométricos que estavam chegando no país.
O Congress tem sido um dos principais palcos de debate em torno da segurança da telefonia celular celular. Ao longo dos anos, o clube tem conseguido produzir suas próprias versões livres dos sistemas proprietários e cercados de segredos industriais que permeiam a infraestrutura GSM. Na última edição, em 2014, múltiplos pesquisadores apresentaram várias falhas descobertas no protocolo SS7 que permitem que alguém com um mínimo de acesso à rede SS7, que interconecta as operadoras globalmente, possam monitorar a localização e grampear ligações de um celular em tempo real, de qualquer parte do mundo.
Para além da segurança da informação, o CCC explora artisticamente as possibilidades de interação e expressão que computadores em rede oferecem — como o Project Blinkenlights, que transformou prédios em Berlin, Paris e Toronto em gigantescas telas (cada janela, um pixel) onde passantes poderiam subir suas próprias animações pela Internet e se revezarem em partidas de Pong através do celular.
Chaos Communication Camp
Refletindo esse espírito da organização — que também é conhecida por descobrir e alertar sobre falhas de segurança em — o acampamento foi um encontro feliz de conectividade e comunidade.
É um “encanto singular”, como nos disse a hacker e ativista dos direitos humanos argentina Cristina Derazenski: “eu experimentei a horizontalidade na ação coletiva, convivendo com uma organização pormenorizada, onde há delegação de tarefas e cuidados”. Cristina, estudante de Direito e de ciências e artes esotéricas, acompanha o Chaos Communication Congress remotamente há quatro anos, e a oportunidade de ir para o acampamento a fez ver que “o que a galera do CCC diz, é o que ela faz. No Camp convivem artistas e jornalistas com cozinheiros veganos, militantes dos direitos das minorias sexuais com experts em segurança de computadores. Todos somos hackers (de acordo com a definição de Stallman). E todos somos igualmente capazes de contribuir para os debates. E a todos se escuta, se cuida, se trata como iguais”.
Os datenklos, cabines que roteavam a conexão desde o centro de operações de rede para todo o Ziegeleipark, proviam acesso wifi (WPA2 com certificado) e também a cabo, para quem quisesse levar até sua vila e usar seu próprio roteador.
Uma rede de telefonia cobria todo o parque. Esse é o quarto acampamento onde um Phone Operations Center (POC) ergue torres de telefonia para que as pessoas levem seus celulares e possam se falar sem custo. Era possível levar seu aparelho DECT (padrão de telefonia sem fio muito comum na Europa) ou comprar um chip GSM no POC e usar seu celular para ligar gratuitamente para outros campers. Havia um número de emergência, um número para ouvir tradução simultânea das principais palestras, e também um número que mandava mensagens SMS com fatos sobre gatos.
O acampamento é organizado em torno das Villages — áreas reservadas previamente onde cada organização (ou “punhado de barracas cujos habitantes tenham um senso de comunidade”) poderia levar ou alugar tendas, cadeiras e mesas, e desenvolver suas próprias atividades. Havia a vila CryptoParty, a já tradicional “casa do chá” organizada pelo grupo francês La Quadrature du Net, as “embaixadas” que congregavam pessoas de um mesmo país…
Por todo o camp, cartazes deixavam bem claro que fotos NÃO eram permitidas, a não ser com o consenso de todas as pessoas envolvidas. Uma quieta manhã do quarto dia de acampamento, enquanto a maioria das pessoas estava dormindo, foi a hora ideal para tirar as fotos que estão no nosso álbum.
Durante as noites, o parque era tomado por luzes coloridas e música eletrônica. Não só cada vila conduzia sua própria festa, com performances dos mais diversos gostos; vários elementos da antiga fábrica de tijolos que funcionava no local também sofreram intervenções criativas. Havia telas de LED feitas de engradados de garrafas de mate (era possível se conectar à engenhoca e transmitir os próprios recados e animações); um “jogo da vida” de Conway multicolorido; um bosque onde um holofote refletia luz em um disco ball rotatório, enchendo as árvores de pontos luminosos dançantes.
Nas duas grandes tendas principais, as palestras e apresentações principais, curadas pela organização do evento, eram feitas para grandes plateias, em inglês ou alemão, com tradução simultânea para a outra língua. Se orientando através da Fahrplan (“grade de horários”) que foi distribuída em um encarte e como um aplicativo, cada hacker (ou forma de vida associada) tinha o desafio de assistir a esse programa oficial enquanto várias “sessões auto-organizadas” apareciam num calendário online, nas lousas e nas conversas das vilas onde elas aconteceriam.
Deep Graphics
Entre essas sessões, estava a nossa — um projeto ainda em concepção para desmitificar a rede alternativa que o Tor possibilita através de seus “hidden services” (conhecida popularmente como a “deep web”). Propusemos construir visualizações de dados sobre os websites que habitam essa rede, em especial aqueles voltados para a proteção de direitos humanos, como plataformas de denúncia (whistleblowing). Nascida de uma proposta descontraída de uma “noite de mojitos” para explorar o que de fato é possível encontrar nessa rede que permite a cliente e servidor se conectarem sem um saber onde o outor está, nossa ideia encontrou a experiência do cientista da computação Rafael Polo, da Tactical Tech, em construir narrativas visuais em rede, como a do Mostre!me Cultura. Você pode conferir o que resultou dos dois encontros que fizemos durante o acampamento no nosso artigo Deep Graphics.
Queer Feminist Geeks
Pela primeira vez na história do CCC, e talvez na história de todos os acampamentos hackers, se teve a presença de uma base Queer Feminista. A village se apresentava visualmente como uma tenda preta com uma bandeira arco-iris e plumas, mas psicologicamente como um respiro da diversidade hacker.
Pessoas se encontravam ali para discutir transgêneros, feminismos, hacking e novas linguagens de um sistema antipatriarcal.
O grupo do village era formado por diversos coletivos, hackerspaces e pessoas interessadas que se conectaram atraves de um chamado no site do camp e uma lista de email aberta.

O “unicórnio do gênero”, ao lado de um mictório, ensinando campers sobre identidade de gênero e orientação sexual
Algumas das atividades do village foram uma oficina de Gerenciamento de Identidades Múltiplas e uma sessão sobre como organizar espaços Queer Geek Feministas.
Eventos como o Queer Geek Village conectam pontos de discussão sobre tecnologias livres que propõe novos modos de ver a sociedade e os sistemas que a definem. A liberdade e inclusão do Camp é vista claramente, como relata Cristina: “se vê mulheres tomarem papeis de protagonismo e responsabilidade, e ter voz igual à dos homens. Nem sequer se nota como algo me que “se esteja trabalhando”: se vê como um ato natural. Do mesmo modo que é comum ver transexuais ou pessoas que definem seu gênero de outro modo transitarem pelo Camp sem necessidade de ocultá-lo, eu não vi sequer olhares estranhos para elas. Junto com um rapaz usando um tutu de bailarina, encontrei famílias e suas crianças indo aos restaurantes ou ao lago.”
A lista do Village continua ativa e as conexões para um próximo encontro ainda estão vivas, quem quiser se inscrever aqui fica o link: https://lists.riseup.net/www/subscribe/queerfeministgeeks
Assista às palestras e mesas principais
Entre as atividades oficiais, gravadas em vídeo, há muita coisa interessante — mas em inglês ou alemão:
Em Resisting Surveillance, a ativista Lily e o pesquisador Harry Halpin contam como o movimento de ativismo ambiental em que participavam foi infiltrado durante anos, tendo o policial Mark Kennedy ganhado total confiança dos membros e se relacionado com Lily por dois anos.
Harry também é presidente do LEAP, um projeto com o objetivo de “dar acesso a comunicações seguras para todas as pessoas na internet”, partindo do que temos de infraestrutura sólida-porém-problemática em direção a interfaces e protocolos que pensem a segurança e a privacidade desde o princípio. Ele, Meskio, Gus Andrews e Rabble mostram o status do esforço global de criptografar comunicações no Encrypted Email for Planet Earth.
Afinada com a discussão aqui no Brasil sobre dados pessoais e identidade — com a consulta pública do APL de Proteção de Dados Pessoais, um outro projeto de lei sobre o mesmo tema já no Senado e a possibilidade de implantação de um registro civil único — Zara Rahman nos apresenta alguns conflitos entre políticas de inclusão digital, programas de censo, profiling e registro civil de um lado, e a possível necessidade de anonimato ou de “não ser contado” dos habitantes de comunidades marginalizadas do outro.
Claudio Guarnieri, pesquisador do Citizen Lab, falou sobre a experiência do grupo (um laboratório que, entre outras coisas, “documenta padrões de censura e vigilância na Internet do mundo todo”) ao diagnosticar e publicar informações sobre invasões e uso de malware por governos para exercer vigilância direta (targeted surveillance).
Há muito mais coisa boa disponível no C3TV — você pode baixar ou assistir no próprio navegador.
Mas do lado de fora das tendas principais, muita coisa acontecia. A reunião de planejamento da equipe do Tails; demonstrações de IMSI catchers e de como detectá-los; como “hackear com cuidado”, prestando atenção na alimentação, postura e respiração; crianças montando seus robôs de lego motorizados e competindo em combates, mas também ajudando as famílias a construir um grande forno de barro.
Enquanto a equipe do Transparency Toolkit apresentava sua ferramenta para tornar simples a busca e navegação pelo arquivo de e-mails vazados da Hacking Team, uma folha de papel colada próxima à tenda anunciava um endereço IP local onde poderiam ser baixados os 400GB de dados internos expostos em julho sobre a controversa empresa que vende softwares de invasão para governos.
Em 2019 tem mais
A experiência de um congresso hacker em um acampamento foi muito rica. Ter estado com tantas pessoas e interagido com tantos projetos ligados à liberdade de expressão e à privacidade frente a vigilância corporativa e governamental, em um ambiente mais descontraído e criativo, estabeleceu mais elos do que podemos contar. Que venham mais camps!
Tags: acampamento, boletim12, chaos communication camp, chaos computer club, fernanda shirakawa, Lucas Teixeira
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