Privacidade e Políticas Públicas

Jovens marginalizados digitais: a interseccionalidade como fator de segurança digital

04/07/2018

Por Belén Giménez, TEDIC, Paraguai | #Boletim17


No Paraguai, reduzir a lacuna digital é um dos desafios latentes que o país busca superar com sucesso, já que é parte dos objetivos que devem ser cumpridos para avançar no sentido de um desenvolvimento mais integral e inclusivo. Abordar esse desafio é de suma importância, já que não é um fato ou fenômeno independente; é um reflexo das desigualdades socioeconômicas existentes e coloca aqueles que não possuem os recursos nem as habilidades tecnológicas necessárias para competir contra uma situação que não apenas aumenta a marginalização socioeconômica, mas que também é replicada no ecossistema digital.

Existem iniciativas que almejam promover o acesso à internet com o objetivo de diminuir a lacuna digital e incentivar o desenvolvimento do país. No Paraguai, entidades governamentais como a Secretaria Nacional de Tecnologias de Informação e Comunicação (SENATICs) com seus Infocentros, assim como as empresas de telecomunicações como Tigo e Claro com seus telecentros comunitários estão realizando um esforço para implementar programas que promovem o acesso à internet em espaços que propiciam alfabetização digital e acesso à informação. Esses programas buscam diminuir a lacuna digital em distintas áreas de todo o país, mas suas instalações se encontram, em sua maioria, próximas a espaços públicos, tanto no centro de Assunção como em espaços nas proximidades de comunidades vulneráveis, como Bañado Sur e La Chacarita. Nessas regiões, quem utiliza tais espaços com mais frequência são crianças entre 9 e 14 anos que na sua maioria possuem poucos recursos e formam parte de um estrato socioeconômico baixo.

Um estudo exploratório realizado em 2016 numa parceria da Global Infancia com o UNICEF reconheceu a importância de “contar com dados atualizados que permitam conhecer, perceber e dimensionar o uso que crianças e adolescentes fazem das TIC com a finalidade de contribuir com a construção de políticas públicas que possam incidir na falta de proteção integral e inclusão social no ecossistema digital. Nesse estudo, 1.076 crianças e adolescentes de 9 a 17 anos pertencentes a 20 escolas públicas e privadas da capital e de três departamentos do país (Central, Caaguazú e Cordillera) completaram um questionário de maneira voluntária. Uma das dimensões era sobre os usos e costumes relacionados às TIC. Foi identificado que o perfil de uso das crianças e adolescentes é focado em atividades de lazer, sociais e educativas, com predominância do uso de redes sociais, assistir vídeos e escutar música no YouTube, falar com familiares e amizades, além de fazer atividades para a escola. Esse estudo teve como sujeitos crianças e adolescentes que tinham acesso a internet móvel e através de computadores pessoais, sejam próprios ou pertencentes a um membro da família.

A partir das observações realizadas no que diz respeito ao comportamento das crianças e adolescentes e o uso de internet através das TIC (tecnologias de informação e comunicação) é possível perceber padrões de uso que diferem de acordo com o nível e frequência de acesso, os quais estão relacionados com o estrato socioeconômico. Apesar de contar com espaços públicos que fornecem acesso a internet e à informação de maneira gratuita, as crianças de estrato socioeconômico baixo possuem um contato muito mais limitado com as TIC do que aquelas que pertencem a estratos sociais mais elevados, e um padrão de consumo de conteúdos muito mais descuidado. Isso não se deve somente a que muitas vezes a supervisão dentro desses espaços não é suficiente ou adequada para o contexto. Também se deve a que, ao não contarem com a mesma frequência e consistência de acesso e uso de internet, não têm o mesmo espaço de oportunidade que permita navegar o ecossistema digital de maneira segura e ágil, se comparadas às crianças de estrato socioeconômico mais alto.

Nos centros comunitários de acesso à informação, em sua maioria utilizados por grupos que não têm acesso nem dispositivos próprios com conexão à internet, o perfil de conexão é similar em comparação com aqueles que possuem um acesso mais frequente à internet no que diz respeito ao uso de algumas plataformas. G. T., que exerceu o papel de dinamizador nesses espaços, comentou sobre as dinâmicas digitais observadas durante todo o ano de 2017 relacionadas ao uso de internet pelas crianças e adolescentes de comunidades vulneráveis pertencentes à zona da capital. Enquanto as instâncias de uso de internet com propósitos escolares eram praticamente nulas, os comportamentos de busca e uso mais predominantes dentro desses espaços foram os de plataformas de jogos online (jogos hospedados em páginas web), vídeos no YouTube e Facebook.

Uso de plataformas de jogos online

“As crianças querem jogar. Entram em sites de jogos que estão repletos de anúncios e como eles não sabem diferenciar um anúncio e a imagem de um jogo, em que você acha que eles clicam? No anúncio. Depois vão “passeando” de site em site buscando o jogo que nunca chega. O perigo é que, além do risco do computador ser infectado com algum vírus, as crianças podem acabar em algum site pornográfico.”

Dentro de cada comportamento de busca e uso, as crianças apresentavam dinâmicas de navegação que demonstravam seu pouco conhecimento sobre segurança digital. Ao buscar sites com fins de lazer, jogos online na maioria, e ao encontrarem diferentes estímulos (links através de ícones ou textos chamativos) tanto de jogos aos que realmente teriam acesso, assim como ícones que simulavam serem jogos, escolhiam clicar nos últimos. Esses ícones, que na verdade eram anúncios, spam ou até oportunidades de phishing ou download de pacotes de vírus maliciosos, colocavam em risco não só o rendimento e estado das máquinas dentro desses espaços, mas também os dados pessoais extraídos dos cliques efetuados nesse tipo de páginas.

Apesar da explicação dada constantemente pelos dinamizadores como G. T. para evitar essas situações no futuro, percebeu-se que as crianças não pareciam distinguir nem assimilar os riscos implicados no uso de sites (e de clicar em anúncios maliciosos) que punham em perigo as máquinas usadas na sala. O grau de curiosidade das crianças e a falsa promessa de ter acesso a jogos de alta gama (que geralmente são pagos e não oferecem acesso através de sites gratuitos), apresentavam obstáculos muito grandes na hora de colocar em prática um uso da internet mais racional e inteligente. Além disso, devido à índole pública do lugar e da quantidade limitada de espaço e computadores (por volta de cinco ou seis em cada centro), geralmente contavam com no máximo uma hora de uso, para então ceder o lugar a outros. Isso significava que, ao não ter o tempo necessário para satisfazer a sua curiosidade e vontade de explorar, era difícil chegar a um ponto de uso das TIC mais racional e ágil que ajude a distinguir os riscos ao navegar nessas páginas.

Vídeos no YouTube

“Crianças com acesso frequente e supervisão já sabem quais vídeos estão de acordo com a sua idade, ou seus computadores já possuem filtros. As crianças sem acesso frequente não. O principal tipo de vídeos que acabam vendo são de reggaeton, cujo conteúdo é erótico, além de novelas de conteúdo erótico e violento, filmes de terror…”

Segundo as observações realizadas por G. T. durante todo o ano de 2017, o tipo de conteúdo consumido pertencia a categorias de vídeos de luta, episódios de novelas para adultos, vídeos musicais de cantores atuais de reggaeton, episódios violentos de anime e filmes de terror, que na sua maioria apresentavam cenas muito grotescas, com muita violência. Além disso, consumiam vídeos de youtubers que muitas vezes acabavam sendo a sua fonte primária de informação sobre o mundo, que na sua maioria fomentam uma cultura de consumo capitalista e individualista, que chegavam inclusive a induzir a ideia de que além da educação, possuir bens materiais tem forte influência no seu status social.

Esse padrão também é observado em crianças que contam com um acesso maior e mais frequente à internet. No entanto, segundo G. T., a diferença reside no fato de que existe uma maior supervisão para estes, tanto dos pais como do entorno social, o que ajuda a desenvolver uma consciência de consumo que faz com que sejam mais capazes de construir uma identidade digital com padrões de uso mais reflexivos.

Uso do Facebook

“Acredito que sequer sabem que existem perigos no uso de redes sociais. Aceitam, adicionam ou seguem qualquer pessoa desconhecida e interagem com ela. Eles contam TUDO, mas também mentem”.

As crianças a partir de seis anos já possuem perfis no Facebook, o que significa que mentem dizendo que têm 13 anos ou mais para poder criar uma conta. Fazem a mesma coisa para criar um e-mail, necessário para ter um perfil. Solicitações de amizade, tanto recebidas como enviadas a pessoas estranhas, foram padrões de comportamento vistos por G. T. nesses espaços, além da constante interação por mensagens com indivíduos com quem nunca haviam conhecido pessoalmente.

Diferentemente de crianças de outros grupos socioeconômicos, nas comunidades vulneráveis parece não existir um ambiente sociocultural que ajude a dimensionar os riscos que existem sobre a sua identidade digital na hora de realizar esse tipo de interações. Algo que para eles pode chegar a ser esporádico e sem tanta importância, como uma interação por mensagem, pode representar um perigo devido à exposição a possíveis instâncias de assédio, hackers e violência, entre outros.

O que esses comportamentos refletem?

O uso sem cuidado de jogos online, consumo de vídeos e de conexão às redes sociais são comportamentos que refletem o desequilíbrio existente no que diz respeito ao acesso físico à tecnologia e à carência das habilidades necessárias para usar a internet de maneira racional, consciente e segura. Ainda que existam iniciativas para proporcionar acesso a internet como as que mencionamos, isso não significa que um simples acesso seja efetivo enquanto continuarem num estado de marginalização que os impede de compreender a necessidade de saber usar a tecnologia para resolver problemas reais e para exercer uma cidadania digital efetiva.

O desafio de diminuir a lacuna digital continua latente por parte dos governos e outras instituições fundamentais, mas também é necessário abarcar e aceitar o desafio de desenvolver soluções e serviços que sejam adequados às condições socioeconômicas e culturais particulares do contexto. Isto significa que a brecha digital deveria ser abordada através de um processo que leve em conta esses padrões de comportamento de uso que foram observados para dessa maneira proporcionar um currículo de alfabetização digital que se adapte ao contexto do qual as crianças provêm. Um processo que se adapte às necessidades de explorar e de satisfazer a curiosidade que elas tem, para assim poder avançar rumo a uma etapa na qual possam usar a internet de maneira mais ágil, consciente e segura, e que de maneira construtiva possam ir incorporando hábitos de usos seguros que lhes permitam não somente diminuir a lacuna digital, mas também se distanciar desse estado de marginalização em que se encontram.

Belén Giménez é assistente de projetos na TEDIC, ONG que defende os direitos digitais no Paraguai. É psicóloga com ênfase nas áres de interação humana com a tecnologia e ciberpsicologia.

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