Privacidade e Políticas Públicas

Tá liberado: Chile precisa de nova lei para evitar entrega de dados em massa

14/05/2018

Por Jessica Matus, de Datos Protegidos | #Boletim16

Embora o Chile ainda não tenha sido implicado no escândalo da Cambridge Analytica e do Facebook, nas eleições presidenciais de 2017 houve, sim, a presença de empresas similares, que exploram dados pessoais em redes sociais para fins eleitorais.

Foram apontadas várias delas, como a Artool, que se autodenomina uma empresa de big data e que tem fortes relações com o atual governo do Sebastián Piñera, e a Brandmetric, que afirma ter como um de seus focos a inteligência a partir de dados das redes sociais e dos meios tradicionais para apoiar a tomada de decisões e estratégias dos políticos. Mais recentemente, a atenção se voltou para a InstaGIS, cujo negócio consiste em cruzar diferentes bases de dados com informações de usuários nas redes sociais para prever padrões de comportamento, consumo e até mesmo preferências políticas.

O trabalho desse tipo de empresa tornou-se mais fácil no país devido a um particular ecossistema que envolve os dados pessoais de chilenos e chilenas. Por um lado, uma lei de proteção de dados pessoais sem poder real de proteção; por outro, uma massificação — e naturalização — indiscriminada no fornecimento do RUT (Rol Único Tributário) para conseguir ofertas e/ou serviços fornecidos tanto pelo Estado como por empresas privadas — o que implica ter nesse único número grande parte da vida de uma pessoa; e, por último, o fato de a base de dados do cadastro eleitoral auditado estar disponível na Internet, por ter sido liberada pelo próprio serviço eleitoral (Servel). Essa base de dados contém informações como nome e sobrenome do eleitor, seu número de RUT, sexo, domicílio eleitoral com indicação da circunscrição eleitoral, comuna, província e região e o número da mesa receptora do voto. A esses elementos é preciso somar o cruzamento com outras bases de dados e bum!: o perfilamento eleitoral pode chegar a ser muito complexo.

Nesse contexto, o Boletim Antivigilância conversou com Jessica Matus, uma das criadoras da Fundación Datos Protegidos, para compreender melhor como tem funcionado a exploração de dados na Internet para fins eleitorais no Chile e como se poderia chegar a mudar esse ecossistema que é tão frutífero para o perfilamento não consentido de pessoas.

Em sua opinião, quão importantes são as redes sociais como o Facebook no Chile e em que extensão elas são usadas em campanhas políticas?

A cada dia no Chile as redes sociais estão tendo maior incidência sobre a população, as empresas e o Estado, não apenas como meio de conexão entre as pessoas, mas também como meio informativo. Segundo números oficiais, há 16,7 milhões de conexões, sendo o Chile o país mais conectado da América Latina com 84% da população na Internet.

Por isso, não é surpresa que, para efeito das campanhas eleitorais, os partidos políticos e os candidatos considerem as redes sociais. A lógica da campanha através delas permeou a sociedade em seu conjunto, até as eleições de dirigentes sindicais usam diversas ferramentas que oferecem plataformas como o Facebook.

Mas, no Chile, além disso, contamos com uma particularidade: o acesso a dados do cadastro eleitoral, que tem feito com que candidatos e candidatas optem por criar estratégias mais diretas e precisas mediante empresas “de serviços guiados por dados”, usando dados para perfilar os eleitores de uma circunscrição em particular.

Desse modo, portanto, a alta conectividade do país e a penetração massiva das redes sociais na população chilena possibilitam a existência de um ecossistema propício ao uso das redes sociais como ferramenta de propaganda política.

Há evidências de que empresas como a Cambridge Analytica, que exploram dados para fins eleitorais, tenham atuado nas eleições passadas?

Há evidências de que, nas eleições presidenciais de 2017, a empresa InstaGIS forneceu serviços de análise de dados para a campanha do então candidato Sebastián Piñera, que acabou sendo eleito.

Em uma reportagem do jornal La Tercera, de dezembro de 2017, uma jornalista analisou as diferentes razões que poderiam ter influenciado o aumento do número de eleitores do candidato eleito, e, para isso, entrevistou diferentes pessoas de localidades com aumento significativo nos índices de votação. Particularmente, foi observado que se optou por uma estratégia descentralizada para o segundo turno, dependendo das características dos habitantes, e a empresa InstaGIS foi contratada com o objetivo de conhecer os eleitores: “O programa computacional permite identificar a adesão política via redes sociais — em especial o Facebook — por meio dos comentários dos usuários e de suas ‘curtidas’. Em seguida, identifica-se a localização desses comentários e a campanha via rede social é então direcionada a essas pessoas. Dessa vez, os possíveis eleitores se dividiram em três categorias: piñeristas, indecisos e perdidos.”

Posteriormente, em 3 de janeiro de 2018, o Centro de Investigación Periodística (CIPER) analisou tanto a empresa InstaGIS como alguns dos serviços prestados por ela, destacando que: “Seu negócio consiste em cruzar diferentes bases de dados com informações de usuários nas redes sociais para prever padrões de comportamento, consumo e até mesmo preferências políticas. Dessa forma, cada vez que você interage em sua conta do Facebook, Twitter ou Instagram, um dos ‘robots’ da InstaGIS é capaz de monitorar esse conteúdo para então cruzar as informações com seu RUT e domicílio, ainda que estes últimos sejam dados pessoais que deveriam ser protegidos, mas as brechas legais fazem com que na prática não seja assim. O resultado: um mapa georreferenciado, com informações sobre quais são, por exemplo, suas inclinações políticas, onde se concentram os delitos em uma determinada comunidade ou se você é ou não fanático por pizza ou sushi.”

Essas são as informações publicadas até o momento, mas existem outras empresas no Chile que se dedicam a esse ramo e oferecem diversos tipos de serviços de análise de dados.

O Chile tem um regulamento para dados pessoais: em que extensão você acredita que isso contribuiu para proteger os dados dos usuários na última campanha eleitoral?

O Chile conta com uma lei de proteção de dados pessoais desde 1999. Trata-se de uma normativa desatualizada, que estabelece uma série de obrigações, que não são fiscalizadas por nenhuma autoridade, e direitos, que somente podem ser exercidos por seus titulares por meio de ações judiciais, o que implica um alto custo para as pessoas. O anterior, somado a uma baixa percepção do direito à privacidade e à proteção de dados por parte dos cidadãos, torna a aplicação da lei escassa ou nula.

Há no Chile alguma regulação sobre publicidade eleitoral em redes sociais ou na Internet em geral? Até que ponto o fato de tal regulação existir ou não afetou a campanha eleitoral?

Recentemente, foi criada uma legislação em matéria de propaganda, publicidade e transparência de gastos eleitorais, estabelecendo-se como propaganda “todo evento ou manifestação pública e a publicidade irradiada e impressa, em imagens, em mídia audiovisual ou outros meios análogos, sempre que promova uma ou mais pessoas ou partidos políticos, constituídos ou em formação, para fins eleitorais”. Esse conceito não faz nenhuma menção à propaganda em meios digitais, mas o Servicio Electoral (Servel) entendeu que isso está compreendido na expressão “outros meios análogos”.

O Servel, no âmbito das atribuições que lhe foram outorgadas, publica um manual que regula as ações que podem ser realizadas em cada uma das etapas de uma propaganda eleitoral. Em termos gerais, o manual define como sendo um gasto eleitoral a contratação de um serviço de propaganda eleitoral que implique um desembolso em dinheiro efetuado pelo candidato, por um partido político ou por um terceiro em seu favor por ocasião e a propósito de ações eleitorais. Adicionalmente, permite a propaganda eleitoral em meios digitais (“todas as comunicações através de meios como páginas da web, redes sociais, telefonia e correios que transcendam o círculo pessoal de contatos e que tais serviços sejam contratados”).

O Servel, então, faz uma distinção em função da transcendência ou não da comunicação do círculo de contatos de uma pessoa. O manual estipula que as comunicações através de redes sociais, correios e ligações telefônicas são, essencialmente, comunicações privadas e dirigidas a uma ou várias pessoas, identificando-as no círculo de contato. Nesse caso, a difusão de ideias não é considerada propaganda, mas um exercício da liberdade de expressão. Por outro lado, se esta implica uma contratação ou o pagamento de um serviço e as redes sociais são exploradas além dos contatos pessoais, ela será considerada propaganda eleitoral. No último caso, o manual do Servel exige que os partidos políticos declarem em um formulário o uso desses meios como propaganda eleitoral.

Quais são as principais sugestões ou recomendações para que tanto o Estado como os cidadãos chilenos enfrentem da melhor maneira a exploração de dados para fins eleitorais?

Urge que nosso país aprove uma nova lei de proteção de dados pessoais que estabeleça as ferramentas mínimas para garantir o direito das pessoas de proteger suas informações pessoais, tanto de empresas privadas como do Estado, em um contexto onde as tecnologias avançam rapidamente e as formas de intervenção e manipulação se diversificam a cada dia. Mas é preciso também mudar a lei eleitoral para evitar a entrega massiva e indiscriminada do cadastro eleitoral com todas as informações pessoais dos eleitores.

Em termos eleitorais, além disso, os órgãos públicos competentes devem necessariamente dispor de mecanismos de fiscalização dos gastos e dos tipos de gasto. As reformas quanto à transparência nesse âmbito são uma boa notícia, mas sem um controle real das diferentes formas de propaganda — incluída a exploração de dados — essas normas se convertem em simples recomendações.

Jessica Matus, do Chile, é fundadora de Fundación Datos Protegidos.

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