Privacidade e Políticas Públicas
Lei de proteção de dados da Argentina já caducou e favorece campanhas políticas
14/05/2018
Por Mariela Milanes, de ADC | #Boletim16
Mauricio Macri, o atual presidente da Argentina, costuma explicar que sua chegada ao poder deveu-se, em grande parte, às redes sociais. Basicamente, o que o PRO, seu partido político, fez foi adotar um sistema que tem funcionado em outras partes do mundo, inspirado na famosa primeira campanha presidencial de Barack Obama nos Estados Unidos. Segundo dados da Câmara Eleitoral solicitados por Perfil, entre o Facebook, Google e Yahoo!, Macri gastou 14 milhões de pesos argentinos (cerca de 700 mil dólares) para chegar à presidência, os quais foram principalmente gastos com publicidade segmentada. A estratégia on-line de Macri teve tanto sucesso que o atual presidente do Chile, Sebastián Piñera, teria se inspirado nela durante o planejamento de sua campanha eleitoral.
Foi nesse contexto que as revelações sobre a empresa de consultoria eleitoral Cambridge Analytica chegaram à Argentina, quando um dos seus diretores na época, diante de uma câmera oculta da cadeia britânica Channel 4, mencionou o país quase que de passagem, sem entrar em detalhes quanto a datas e nomes de candidatos e partidos políticos.
Investigar outros antecedentes parece ser um assunto complicado. Primeiro, porque os partidos políticos imediatamente saíram negando qualquer relação com a Cambridge Analytica. De acordo com o jornal El País da Espanha, fontes macristas negaram que tal empresa tenha trabalhado com as equipes de campanha oficiais nas últimas eleições; fontes do kirchnerismo, por sua vez, também rechaçaram qualquer vínculo com a consultora e consideraram que o vídeo não é prova de nada. Além disso, conforme relatou uma fonte judicial a esse mesmo jornal com relação a uma recente investigação de ofício aberta pela Câmara Nacional Eleitoral (CNE), “o problema é que não acreditamos que a empresa, se alguma vez operou aqui, tenha usado seu nome original”.
Além da Cambridge Analytica na Argentina, Beatriz Busaniche, presidente da Fundación Vía Libre, observa a alta dependência que os governos – em todos os níveis na Argentina – têm da criação e uso de diversas bases de dados hoje em dia. Tal uso, segundo ela, poderia perfeitamente ser para fins políticos. “As administrações públicas são grandes coletoras de informações e as administram para influenciar a opinião pública tal como nos informa o boletim oficial desta manhã. Além disso, o Facebook é um dos principais recebedores de pautas publicitárias oficiais. Podemos continuar acreditando ingenuamente que não existe nenhuma relação entre as bases de dados do Estado e as campanhas eleitorais?”, questiona.
Em meio ao escândalo do Facebook e da Cambridge Analytica e mediante uma resolução publicada no Boletim Oficial, o atual governo criou a “Unidade de Opinião Pública”, que se encarregará de solicitar e sistematizar as informações sobre as demandas da população. Segundo algumas mídias, “trata-se da criação de uma unidade dedicada à elaboração de uma base de dados gigantesca que ficará à disposição do Governo. A suspeita, obviamente, é que essa enorme base de dados possa ser usada para influenciar nas eleições, sem precisar pagar os altíssimos honorários da Cambridge Analytica”.
Frente a todo esse panorama, o Boletim Antivigilância recorreu a Marianela Milanes, cientista política e pesquisadora da Associação pelos Direitos Civis (ADC), a fim de saber em que pé estão as políticas públicas na Argentina para enfrentar os novos desafios da exploração de dados para fins eleitorais.
Em sua opinião, quão importantes são as redes sociais como o Facebook na Argentina e em que extensão elas são usadas em campanhas políticas?
As redes sociais na Argentina ganharam e continuam ganhando um peso relevante. Dois argumentos centrais sustentam essa afirmação. Por um lado, de acordo com diversas fontes, já em 2017 era fato que cerca de 79% da população argentina se conectava à Internet, sendo que 70% eram usuários ativos das redes sociais. E o Facebook é atualmente a plataforma de maior penetração no país.
Por outro lado, em um marco geral, nosso país vive uma nova etapa na era da revolução digital que nasceu da combinação de vários fatores, dentre os quais três poderiam ser assinalados como relevantes: o aumento no uso de dispositivos móveis, a crescente interconectividade e o surgimento das redes sociais. Ela também fez surgir um novo modelo de se relacionar, o da “sociedade em rede”, que trouxe consigo, por sua vez, uma nova forma de comunicação política. É por isso que não é de se estranhar que as redes sociais tenham adquirido progressivamente um peso específico nas campanhas políticas.
Nas eleições presidenciais de 2015, todos os grupos políticos começaram a entender que o espaço digital era mais uma arena onde eles deveriam travar suas batalhas, que não ter presença nesse espaço seria prejudicial. Assim, durante aquele ano, as redes deixaram de ser atributo e diferencial de uma única força política — o PRO — para se converterem em um meio usado por quase todos os partidos, independentemente de seu tamanho.
Durante as eleições legislativas de 2017, as redes sociais foram padronizadas como um dos principais meios para complementar e amplificar todas as campanhas. Na minha opinião, a Argentina hoje está migrando de um esquema tradicional de projeto de campanha baseado em um mundo dual, on-line e off-line, e passando a interpretar essa dualidade como as duas faces de uma mesma moeda. A relevância do uso das redes sociais nas campanhas eleitorais será representada pela capacidade de coordenação com a campanha territorial e pela capacidade de complementar e amplificar a comunicação realizada através dos meios tradicionais de comunicação em massa.
Há evidências para suspeitar que empresas como a Cambridge Analytica ou similares atuaram explorando dados para fins eleitorais nas eleições seguintes na Argentina?
Segundo a informação que circula nas redes, a Cambridge Analytica, por meio da empresa SCL Group, publicou em seu site que tinha um escritório em Buenos Aires, na rua Arenales 915 da Capital Federal. Fontes jornalísticas garantem ter contatado pessoas próximas de Alexander Nix (ex-diretor da empresa Cambridge Analytica) na Argentina, que afirmaram que a empresa nunca chegou a operar no país e que o endereço mencionado era usado para receber correspondências.
Não podemos confirmar se a SCL Group operou de fato na Argentina, nem há mais informações disponíveis sobre o tema. Podemos apenas acrescentar que, conforme veio a público nos últimos dias, legisladores da oposição preparam uma denúncia para apresentar no foro penal e eleitoral, acusando funcionários do alto escalão do governo de Mauricio Macri de haver mantido negociações com executivos da Cambridge Analytica antes das eleições legislativas de 2017. Ao mesmo tempo, a Câmara Nacional Eleitoral iniciaria uma investigação de ofício por meio de seus auditores para determinar se a empresa trabalhou com algum partido político antes dos últimos comícios.
A Argentina tem um regulamento para dados pessoais: em que extensão você acredita que isso contribuiu para proteger os dados dos usuários da Internet na última campanha eleitoral?
Existe um vazio legal significativo, já que a lei de proteção a dados pessoais permite o uso de dados obtidos de fontes de acesso público irrestrito sem que seja necessário o consentimento do titular. O texto da Lei — redigido há mais de 15 anos — não inclui o atual fenômeno de interação, agregação e perfilação que se produz nas redes para fins políticos. Então sim, podemos destacar que a lei vigente contém disposições favoráveis à prestação de serviços realizada pelas agências de publicidade em geral, o que contribui para um uso amplo dos dados por elas coletados.
Há alguma regulação sobre publicidade eleitoral em redes sociais ou na Internet em geral? Até que ponto o fato de tal regulação existir ou não afetou a campanha eleitoral?
A Argentina possui leis que contemplam o sistema de distribuição gratuita de publicidade eleitoral em mídia audiovisual nos espaços cedidos, mas nada dizem a respeito do sistema de publicidade digital. Esse vazio produz dois efeitos imediatos: a ocultação dos gastos realizados pelos grupos políticos para esse fim e a necessidade de atualizar e conciliar as regulações de proteção de dados pessoais e de acesso a informações públicas com aquelas que regem o financiamento dos partidos políticos e as campanhas eleitorais. Outro ponto que carece de revisão é que o Código Nacional Eleitoral contempla um período de vedação que proíbe a propaganda política 48 horas antes da celebração de comícios, porém as redes sociais não estão contempladas nessa restrição, gerando outro vazio legal.
Quais são as principais sugestões ou recomendações para que tanto as políticas públicas como os cidadãos enfrentem da melhor maneira a exploração de dados para fins eleitorais?
Em primeiro lugar, fica evidente que o Estado precisa promover uma atualização normativa que regule o uso e a contratação de terceiros para a realização de propaganda política on-line, atendendo à necessidade de transparência nos processos pelos quais essa propaganda é realizada. É preciso compatibilizar a regulação existente que protege os dados pessoais e garante o acesso a informações públicas com a regulação sobre o comportamento dos partidos políticos, as campanhas eleitorais e seu financiamento, incorporando a esfera digital e suas inovações tecnológicas. Em segundo lugar, torna-se necessário também estabelecer normas claras sobre as atividades comerciais vinculadas à compra e venda de repositórios de dados pessoais dos usuários.
As plataformas e mídias digitais públicas e privadas devem apresentar seus contratos de adesão da forma mais clara e didática possível, para que os usuários possam efetivamente saber quais dados estão cedendo e como poderão ser usados. Quanto a quem usa essas ferramentas, de certa forma, há que lhes sugerir que leiam com atenção e cuidado os contratos de adesão e as condições de uso antes de se inscreverem como membros de qualquer plataforma on-line.
Marianela Milanés, da Argentina, atua como politóloga na ADC.
Tags: Boletim16, casos, Marianela Milanes
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