Privacidade e Políticas Públicas
Redes mesh e telefonia alternativa/estratégias de resistência/mobilização via redes autônomas
05/05/2017
Por Loreto Bravo | #Boletim15
Fotográfo: Daniel Guzman. Isla Negra, Chile.
Telefonia móvel autônoma e comunitária
De acordo com a União Internacional de Telecomunicações, há de 2 a 3 bilhões sem serviço de telefonia móvel no mundo, principalmente porque os órgãos reguladores das telecomunicações concedem acesso ao espectro radioelétrico para serviços móveis apenas às grandes empresas, restringindo o acesso a microempresas comunitárias que desejam fornecer esse serviço em áreas rurais.
É comum pensar que a única maneira de se comunicar via telefone celular é usar os serviços de grandes empresas de telefonia móvel globais, e que o lucro é o único modelo econômico para a criação e a sustentabilidade desses serviços. No entanto, existem comunidades e povoados aos quais as grandes empresas não têm interesseem fornecer serviços por se encontrarem em áreas geograficamente distantes, com baixa densidade populacional e/ou onde a economia é de autossubsistência (considerando-se, por exemplo, que o investimento inicial é muito alto), ou que simplesmente não desejam ter serviços de telefonia baseados em um modelo de lucro sem escrúpulos. Estes são alguns exemplos desse raciocínio:
Rhizomatica
A organização Rhizomatica está localizada em Oaxaca, no sudeste do México. Ela funciona criando pontes entre comunidades de povos indígenas originários do México e pessoas dedicadas à engenharia de telecomunicações com sistemas abertos, com o objetivo de criar infraestruturas de telefonia móvel para fortalecer a autonomia desses povos.
Para podermos compreender a origem e o sucesso do projeto de telefonia móvel autônoma, é importante entender o contexto.
Contexto e história
Oaxaca é um território complexo, com grande diversidade cultural (17 povos originários vivem lá), de terreno acidentado, onde a propriedade da terra é comunitária; existem fortes estruturas governamentais locais reconhecidas pela constituição mexicana e tratados internacionais; a economia é basicamente de autossubsistência.
Nos anos 70 e 80, essas pessoas começaram suas primeiras empresas comunitárias de gestão de bens florestais e aquíferos comuns, que são as antecessoras das atuais empresas de telecomunicações comunitárias. Esse complexo contexto é um terreno fértil para projetos de infraestrutura em telecomunicações que fortalecem a autonomia dos povos originários.
A partir do movimento social de 2006, os povos originários de Oaxaca se encarregaram de criar seus próprios meios de comunicação, com especial ênfase nas rádios comunitárias, sendo, atualmente, o estado com a maior concentração dessas rádios em todo o país. Embora não haja um censo oficial, as organizações sociais estimam que existem 60–100 estações de rádio comunitárias operando atualmente no estado de Oaxaca.
Motivados pela necessidade de comunicação, os líderes comunitários desses povos contataram as grandes empresas de telefonia inúmeras vezes para solicitar serviços móveis, mas o resultado era sempre negativo por serem povoados pequenos, remotos e com poucos recursos; eles então começaram um diálogo com a equipe da Rhizomatica para buscar maneiras de construir uma infraestrutura de telefonia móvel que pudesse fortalecer a autonomia desses povos. Foi assim que surgiu o projeto Telefonia Celular Autônoma e Comunitária.
Infraestrutura
Qualquer tipo de telefone pode acessar essas redes, sem exigir um cartão SIM específico. No caso de Oaxaca, o sistema de numeração é construído de acordo com o código postal desse território. O sistema de gestão e de cobrança é feito para ser adaptado às línguas originárias faladas na região. Para mais detalhes sobre a arquitetura do sistema e o hardware e o software usados, recomendamos acessar a wiki da Rhizomatica em http://wiki.rhizomatica.org/index.php/System_Architecture/es
Atualmente (julho de 2016), existem comunidades, sendo que algumas delas são interligadas. Cada transceptor é propriedade do órgão do governo comunal de cada povo. O custo por telefone registrado na rede é de 40 pesos mexicanos por mês, o que equivale a US$ 2 por chamada, com mensagens de texto ilimitadas dentro da comunidade ou região interconectada. As chamadas para fora da região, por exemplo, para a cidade de Oaxaca ou alguma cidade nos Estados Unidos, são feitas através do sistema de Voz sobre IP (VoIP), fornecendo aos usuários da rede as menores tarifas do mercado — e para isso é importante que a comunidade que deseja ter um sistema de telefonia móvel autônoma resolva antes a questão da sua conexão com a Internet. Normalmente, isso é feito por microempresas locais que estão criando redes via links de Wi-Fi para levar a Internet até esses lugares. O custo de um equipamento, incluindo importação, instalação e treinamento operacional, é de cerca de US$ 7 mil. Atualmente, a Rhizomatica conta com cerca de 3.000 usuários de serviços de telefonia móvel autônoma em Oaxaca. Com base nessa experiência, um grupo de jovens estudantes de computação desenvolveu uma réplica do projeto na costa atlântica da Nicarágua, chamado SayCel.
Conquista política
O sucesso da Rhizomatica e dos povos originários de Oaxaca não tem um aspecto apenas técnico, mas também político, desde que em junho de 2016 a associação civil Telecomunicaciones Indígenas Comunitarias (TIC A.C.), composta por 17 comunidades com redes de telefonia móvel autônoma, obteve uma concessão para operar redes de telecomunicações durante 15 anos em cinco estados do México: Veracruz, Guerrero, Oaxaca, Puebla e Chiapas. Essa conquista abre um precedente histórico nas telecomunicações do México e do mundo, o qual a União Internacional de Telecomunicações (UIT) divulga como exemplo a ser seguido por outros governos da região.
Redes Wi-Fi livres e comunitárias
História
É uma associação civil que nasceu na província de Córdoba, na Argentina, e seu trabalho é construir infraestruturas de Internet usando software livre e hardware de custo muito baixo. A principal vantagem dessas redes é permitirem acesso à Internet em povoados onde não há serviços fornecidos por empresas, mas, acima de tudo, elas podem ser facilmente administradas por pessoas da própria comunidade, sem nenhuma especialização em eletrônica ou computação, e têm preço acessível. Além disso, qualquer pessoa pode estender a rede, desde que respeite seu projeto e seus princípios, pois não se trata de um modelo comercial de crescimento.
Através dessa rede de Internet livre, as pessoas têm acesso a serviços de bate-papo local, transmissão on-line da rádio comunitária local, chamadas VoIP, compartilhamento de arquivos entre pares e jogos. Na Argentina, essas redes estão no Delta do Tigre, Buenos Aires, e no Vale de Paravachasca, Córdoba.
Infraestrutura
O hardware é composto por um roteador e uma antena, e por outros materiais para adaptar o roteador e o cabo externo que conecta a antena. No roteador instala-se um firmware (sistema operacional) que permite sua autoconfiguração e outros programas para personalizar e monitorar a rede. A Altermundi modifica os roteadores para que, mediante a conexão com uma antena direcional, o sinal do Wi-Fi possa cobrir vários quilômetros. Dessa forma, vai-se construindo uma rede de dispositivos com sinal de Wi-Fi através da qual as pessoas podem trocar dados entre si dentro de um povoado ou região e se conectar e compartilhar na rede que hoje conhecemos como Internet.
Qual é a diferença entre rede livre e rede comunitária? Características de uma rede livre:
- Uso livre: pode ser usada por seus participantes para oferecer e receber qualquer tipo de serviço que não afete seu bom funcionamento.
- Neutralidade: não inspeciona nem modifica os fluxos de dados dentro da rede, além do necessário para seu funcionamento.
- Interconexão livre: permite, de forma livre, o fluxo de dados com outras redes que respeitem as mesmas condições.
- Trânsito livre: proporciona a outras redes livres acesso às redes com as quais ela mantém acordos voluntários de livre interconexão.
O objetivo das redes livres é devolver o sentido comum à estrutura da Internet, permitindo o livre fluxo de informações, aproveitando ao máximo a infraestrutura e reduzindo os custos para que as pequenas empresas possam se desenvolver facilmente em áreas onde os custos de acesso à Internet são impraticáveis. É nesse sentido que as redes comunitárias são uma expressão das redes livres, porque desempenham um papel fundamental para a comunidade por meio das seguintes características:
- Propriedade coletiva: sua infraestrutura é propriedade da comunidade, que a desenvolve;
- Gestão social: a rede é gerenciada pela comunidade;
- Projeto acessível: as informações sobre como a rede funciona e seus componentes são públicas e acessíveis;
- Participação aberta: qualquer um pode ampliar a rede, respeitando seu projeto e seus princípios.
Conquistas políticas
Ao mesmo tempo que implantava a tecnologia, a Altermundi participou do debate sobre a Lei Argentina Digital aprovada em dezembro de 2014, conseguindo, em conjunto com outros setores, que fosse incluído o Artigo 94 sobre a “promoção e proteção das redes comunitárias”.
Além disso, o trabalho da Altermundi na criação dessas redes livres e comunitárias deu início à formação de uma equipe cooperativa que hoje desenvolve o projeto Libre-Mesh.
Desafios
O principal desafio para essas redes livres é conseguir largura de banda por preço de atacado para se conectar com o restante da Internet. Enquanto 1 megabyte por segundo custa cerca de US$ 0,78 por mês na Europa, na Argentina a mesma velocidade custa US$ 40 por mês, ou seja, 51 vezes mais do que na Europa.
Guifi
É uma rede de telecomunicações que funciona como um bem comum. Atualmente, ela possui mais de 30.000 nós ativos dentro da rede. É uma rede aberta, livre e neutra, definida desta forma:
- É aberta, porque é oferecida universalmente para a participação de todos, sem nenhum tipo de exclusão ou discriminação, e porque fornece, em qualquer momento, informações sobre como a rede e seus componentes funcionam, o que permite que qualquer pessoa possa melhorá-la.
- É livre, porque todos podem fazer o que quiserem e usufruir das liberdades previstas nos princípios gerais (Seção I.), independentemente do nível de participação na rede e sem imposição de termos e condições que contradigam esse acordo unilateralmente, desde que não prejudiquem o funcionamento da rede ou a liberdade de outros usuários, e que respeitem as condições dos conteúdos e serviços que circulam livremente.
- É neutra, porque a rede é independente do conteúdo, ela não os condiciona e, portanto, eles podem circular livremente; os usuários podem acessar e produzir conteúdos independentemente das suas possibilidades financeiras ou condições sociais, mas, em nenhuma circunstância, com o objetivo de substituir ou bloquear outros conteúdos.
É no seio dessas comunidades que nasce a esperança de novas formas criativas e colaborativas de fornecer serviços de telefonia. Nós apresentamos aqui apenas alguns dos projetos alternativos de telefonia móvel e rede sem fio cujos modelos estão baseados no exercício do direito à comunicação dos povos. Outras iniciativas igualmente interessantes são o Baobaxia no Brasil e o Zenzeleni na África do Sul, e a ideia é que essas iniciativas cresçam por todo o Sul global.
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* Texto escrito originalmente para a wiki Gendersec (Gênero e Recursos Tecnológicos) da Tactical Technology Collective
Loreto Bravo é uma ciberfeminista latino-americana e radialista apaixonada e consultora internacional nas áreas de telecomunicações, software livre e segurança digital.
Tags: boletim15, celular como estrategia de resistencia, Loreto Bravo
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