Privacidade e Políticas Públicas

Fronteiras móveis: sobre celulares, dados e vigilância nos aeroportos

05/05/2017

Por Paz Peña | #Boletim15

Depois de passar duas semanas no Chile dirigindo seu automóvel solar por diferentes estradas, Sidd Bikkannavar, 35 anos, precisava voltar aos Estados Unidos, seu país. Seu trabalho no Laboratório de Propulsão a Jato da NASA o esperava. Porém, quando ele chegou à fronteira algo havia mudado radicalmente: ele era um dos primeiros cidadãos nascidos nos EUA que, após a ordem executiva referente a imigração e viagens do Donald Trump, conhecida como Muslim Ban, era obrigado a entregar seu celular (que, ainda por cima, era da NASA) e informar seu código de desbloqueio para que os policiais da imigração o revistassem.

A medida do novo governo dos EUA  — que pode vir a ser imitada por outros países — vem dominando as manchetes desde então. O fato de nossos dispositivos eletrônicos, especialmente os celulares, poderem ser rastreados por agentes da imigração colocou em foco a discussão sobre a importância que esses dispositivos têm em nossas vidas, a tal ponto que a polícia vai poder conhecer nossos contatos, as pessoas com quem nos comunicamos normalmente, os conteúdos da maioria dessas conversas, nossas fotos e vídeos, mensagens de e-mail e de texto, nossas opiniões e gostos expressos nas redes sociais, os últimos locais onde estivemos, entre outros inúmeros detalhes.

Mas, em meio à confusão causada por tal medida (inaceitável), foi dado a entender que ela é um tipo de exceção, produto da loucura fascista da administração do Trump. Algo que nos faz perder o foco com relação às políticas de dados nas fronteiras, que já existem há muito tempo e cada vez mais têm como objeto de desejo nossos celulares. Dois fatores-chave podem ajudar a compreender melhor o papel dos nossos celulares nas fronteiras.

UM: Sobre fronteiras cada vez mais vigiadas

Não. Não se trata de que antes as fronteiras não eram um lugar de vigilância.  Mas tudo ficou mais rigoroso depois dos ataques de 11 de setembro de 2001 nos EUA. A guerra contra o terrorismo fez proliferar diversas bases de dados e sistemas computacionais, e inúmeros dados sobre passageiros começaram a ser coletados, armazenados e analisados de forma rotineira pelas autoridades de imigração de todos os nossos países. Essas diversas bases de dados de passageiros são cruzadas com outras — normalmente as das agências de inteligência e polícia nacional e internacional — usando a luta contra o terrorismo e a imigração ilegal como principal desculpa.

As fronteiras hoje são construídas com dados para a definição dos nossos perfis. Em outras palavras, todas as nossas informações pessoais (incluindo os dados exigidos para obtenção de vistos e passaportes, dados manuseados pelas companhias aéreas [API, Advance Passenger Information, e PNG, Passenger Name Record] e muitos outros) são usadas para criar categorias que permitem aos agentes de imigração fazer um controle remoto de toda a enorme quantidade de passageiros nas fronteiras.  Nossos dados servem de entrada para que os sistemas de computação e os agentes da polícia realizem uma análise de nossos antecedentes e nos concedam autorização para entrar em seus países.

O problema é que quando se conta com sistemas de computação e se abraça a grande promessa do Big Data, a compulsão pelos dados se torna cada vez maior. Sim, nós criamos um monstro e temos que assumir a responsabilidade por alimentá-lo: o Big Data só funciona com mais dados. Mas se quase todos os nossos dados, enquanto viajantes, já estão à disposição deles, o que seria mais “lógico” do que continuar alimentando o sistema e passar a exigir os dados contidos em nossos celulares?

E precisamos ser justos aqui: essa ideia de obter os dados dos nossos celulares não foi do Trump. Durantes as duas administrações do Obama, os agentes de fronteira já tinham ampla liberdade para apreender e revistar qualquer dispositivo digital sem precisar de ordem judicial. E nós latinos, especialmente os mexicanos, sabemos disso muito bem. Os dados de nossos celulares têm alimentado o sistema de vigilância e definição de perfis das fronteiras desde 2009.

 DOIS: Sobre viagens sem inconvenientes

Sim, a luta contra o terrorismo e a imigração ilegal é uma grande desculpa para encher as fronteiras globais com tecnologia de ponta, o que ajudou a fortalecer a multimilionária indústria da vigilância. Mas o negócio não para por aí. Há outro argumento cada vez mais frequente para incitar a compra de soluções de vigilância nas fronteiras, especialmente nos aeroportos: o conceito de seamless travel, ou viagem sem inconvenientes.

O constante aumento no número de passageiros em quase todo o mundo produz dois efeitos: a necessidade que os portos de entrada — especialmente os aeroportos — têm de administrar melhor seus recursos e a demanda desses mesmos passageiros por uma experiência de viagem eficiente, rápida e até agradável. Um exemplo perfeito disso são as tecnologias de biometria: elas não apenas prometem segurança, mas também eficiência.

Nesse contexto, os dispositivos eletrônicos móveis, especialmente nossos smartphones, estão se transformando em agentes fundamentais na administração de aeroportos, já que, devido a nossos celulares com Wi-Fi ou Bluetooth ativado funcionarem com ondas de rádio, nossos aparelhos emitem constantemente solicitações de teste em busca de pontos de acesso à Internet. Isso tem levado ao desenvolvimento de diversos aplicativos, como sistemas de análises físicas que dependem dos sinais de rádio emitidos por nossos dispositivos para detectar nossa presença e rastrear nossos movimentos.

Assim, os administradores dos aeroportos conseguem rastrear os passageiros (o anonimato não fica claro quando os usuários são solicitados a se registrarem para acessar a Internet nos aeroportos) e compreender melhor os padrões de tráfego, monitorar tempos de espera, bem como analisar comportamentos de consumo e até mesmo rastrear a localização de funcionários e outros recursos do aeroporto. Os dados dos nossos celulares, voluntária ou involuntariamente, estão a serviço de uma viagem “sem inconvenientes”.

Nossas fronteiras

Imersos na confusão mundial, uma reação clássica da imprensa latino-americana à medida de Trump foi orientar sobre o que fazer quando um agente da fronteira dos Estados Unidos solicitar nossos celulares e códigos de desbloqueio. Mas há mais perguntas deste lado de cá do continente que os interessados em temas sobre direitos humanos em geral e, particularmente, em privacidade deveriam fazer.

O Instituto Knight recentemente pediu ao governo dos EUA números detalhados sobre viajantes cujos celulares foram revistados, incluindo uma distribuição por raça, etnia, nacionalidade e condição migratória, bem como detalhes sobre a base de dados do governo onde as informações dessas revistas são armazenadas. Como suspeitavam, as respostas foram evasivas. Tais respostas, se fornecidas, seriam evidência concreta de como a medida de Trump afeta a população latina, seja ela imigrante ou não, nos Estados Unidos.

É tempo também de revermos nossas próprias políticas. Que tipos de informações são solicitadas às pessoas que desejam cruzar nossas fronteiras? Os agentes de fronteira dos nossos países solicitam a entrega de celulares?  Quais são as práticas que os aeroportos seguem para manusear nossos dados móveis? Em um continente onde cada vez mais se adotam medidas para a vigilância e a eficiência das fronteiras (desde biometria até bases de dados como as de API e PNR), temos razões para pensar que muitos de nossos governos podem vir a considerar a adoção da mesma medida dos EUA.

Grande parte da discussão global resultou em recomendações técnicas muito concretas para cruzarmos fronteiras com nossos celulares. Isso sem dúvida ajuda a resistir a uma medida que é, visivelmente, uma invasão da nossa privacidade. No entanto, não podemos esquecer que o discurso das fronteiras, da imigração e da segurança está cada dia mais forte na agenda política de atores institucionais. Se hoje, mais do que nunca, é essa agenda que define as eleições não apenas nos Estados Unidos, mas também na América Latina, é igualmente importante que nossa resposta não seja somente técnica, mas também política.

 

Paz Peña é consultora independente na área de direitos digitais e comunicação estratégica para advocacy. É jornalista com mestrado em gênero e cultura na área de Ciências Sociais. Foi diretora de comunicação e de advocacy na Derechos Digitales. É membro do conselho colaborativo de Coding Rights. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tags: , ,