Privacidade e Políticas Públicas

Gordura Trans

10/09/2016

#Boletim14

A Coding Rights entrevista Miro Spinelli, performer transgênero1:

CR: A performance Gordura Trans repercutiu de modo intenso nas redes sociais depois da sua realização no Desfazendo Gênero, que aconteceu na UFBA no ano passado, a partir de uma imagem da performance que foi utilizada fora de contexto em diversos posts que ridicularizavam ou eram simplesmente agressivos com seu trabalho. Um dos seus projetos expostos no evento Depois do Futuro, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage no Rio de Janeiro, tratou diretamente dessa questão. Como a sua pesquisa foi afetada por aqueles acontecimentos?

Miro Spinelli: Quando aconteceu a viralização das fotos do trabalho, imediatamente entendi que minha forma de lidar com isso seria incorporar o material produzido por essa repercussão à pesquisa de Gordura Trans, que tem a especificidade de ser um projeto continuado e seriado. Criei uma contagem paralela à principal do projeto, as gorduras saturadas, que querem abarcar a camada da recepção da performance. A arte contemporânea e a performance especialmente acontecem nesse campo de negociação entre artista/obra/receptor, e este episódio mostra claramente isso. Isso também me fez pensar com mais cuidado como administro e produzo os registros das ações. Experimentei recentemente uma segunda gordura saturada apenas com relatos de espectadores sobre a ação, sem imagens, usando ao invés disso fragmentos de textos impressos compostos com o material gorduroso que havia usado na ação em questão.

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Performance Gordura Trans, por Miro Spinelli

CR: Plataformas como o facebook têm políticas de representação que podem afetar os modos pelo quais indivíduos constroem suas identidades em público, por exemplo na exigência da utilização de “nomes reais”. Como você vê a comunicação informatizada em relação à construção de identidades?

Miro Spinelli: O facebook espelha uma regime identitário rígido que não condiz com muitas vivências. Pessoalmente não tive problemas com mudança de nome nesta rede, mas sei que, pelo menos há um tempo atrás, algumas pessoas foram requisitadas a enviar documentos para provar o seu “nome real”, pedido este que se alia à transfobia institucional do estado, no caso de pessoas trans. O direito ao nome é um direito muito básico e complicadíssimo de se conseguir no Brasil. É mais fácil mudar de nome sendo cis pelo simples fato de não gostar dele que mudar baseado em transgeneridade. O Estado controla os corpos, o facebook ajuda.

CR: A dissolução do Ministério da Cultura, defendida por setores ultraconservadores da sociedade brasileira, acabou por reacender discursos difamatórios contra o seu trabalho. Num depoimento seu no Facebook você comentou sobre esta questão. Como você sentiu a repercussão do seu posicionamento? Você gostaria de comentar mais alguma coisa além do que já colocou?

Miro Spinelli: Acredito que a repercussão se deu dentro das próprias limitações da interface do facebook, isto é, principalmente dentro do círculo dos meus contatos, que já é bastante selecionado. Mas sinto no geral que é muito difícil ter dimensão destas coisas, mapear a difusão da informação. Quero só enfatizar o que já disse: ao contrário do que quer acreditar o setor ultraconservador, a queda do Ministério da Cultura, ou seu sucateamento, não diminui a produção de arte ou sua potência política. Agora mais do que nunca, com essa ascensão fascista em curso, é preciso aprender a potência da precariedade, e muitos de nós (pessoas trans, racializadas, dissidentes) temos em nossos corpos esse saber, e sabemos um pouco melhor como acessálos pois estas políticas públicas já não nos contemplavam antes e ainda assim estávamos produzindo. As redes são fundamentais, como disse no texto, tanto presenciais quanto online. Precisamos trocar estes saberes subalternos, fortalecer este lugar da margem, pois o centro se enrijece cada vez mais.

CR: Redes de ativismo e artivismo interseccional online têm se estabelecido como importantes espaços de troca nos últimos anos. Como essas iniciativas afetaram a sua pesquisa? Como você acha que elas impactam trajetórias pessoais?

Miro Spinelli: Estas redes influenciam diretamente minha vida e pesquisa artística. Tenho um webdocumentário, o Trans*Lúcidx, que pesquisa esse universo, em específico as redes ligadas à questões de transgeneridade. Mas de um modo geral, estas redes são um modo de manter contato com outras e outros artistas e ativistas e acompanhar suas ações, manter diálogo. Percebo que estes espaços, mesmo com suas limitações, permitem que pessoas que são parte de minorias políticas possam encontrar interlocutores. Você pode estar no interior profundo do Brasil, mas com uma simples busca encontra pessoas trans, por exemplo, falando sobre suas trajetórias, aconselhando, debatendo política. Faz a gente se sentir com aliados e, no fim, menos sós.

CR: Muitas vezes vemos na mídia uma contraposição entre o comportamento do indivíduo offline e online, quer dizer, alguns textos afirmam que as pessoas assumem uma personalidade agressiva apenas quando estão detrás de um computador por estarem supostamente anônimas. Você acredita nesta oposição? Até que ponto pela sua experiência pessoal vc percebe a relação entre violência offline e online?

Miro Spinelli: Pelo que observo, há sim, uma diferença entre os comportamentos online e offline, mas isso não quer dizer que uma coisa não influencie na outra. Mas acho que não é exatamente pelo anonimato, pois muitas destas pessoas usam seu nome e fotos reais, mas sim pela ausência do corpo no embate com o outro. Aquele que é ofendido não pode se defender fisicamente. É muito mais fácil ofender alguém online por isso. O episódio com Gordura Trans deixa isso muito claro. Nunca, das 5 ações presenciais que fiz com esse trabalho – uma delas em espaço público, houve qualquer atitude violenta por parte do público. Mas uma vez que o corpo vira imagem, não há mais negociação/relação, não há mais agência de mão dupla e, por isso, todo ódio pode ser destilado.

1 Miro Spinelli é artista transmídia e pesquisadorx atuante no Rio de Janeiro e em Curitiba . É mestrandx em Performance na Pós Graduação em Artes da Cena da UFRJ e integrante do Água Viva Concentrado Artístico. Atualmente pesquisa performance, fotografia, vídeo, gênero e transgeneridades, tendo como foco o corpo e suas possíveis poéticas e políticas.

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