Privacidade e Políticas Públicas

Paradoxos da militância feminista online e offline

10/09/2016

#Boletim14

A Coding Rights entrevista Lola Aronovich, do blog Escreva Lola Escreva:

CR – Seu blog é constantemente citado por jovens ativistas e pesquisadoras como sendo a primeira referência (ou porta de entrada) para a militância feminista na web. Como você compreende esse(s) canal(is) de comunicação e divulgação das ideias feministas compreendidas muitas vezes como um “espaço de confiança” em um ambiente tão diverso e aberto como a internet?

Lola Aronovich: Eu me sinto muito honrada e feliz pelo blog ser citado como porta de entrada (ou uma das portas) para o feminismo na internet. São muitos anos de blog, desde janeiro de 2008, e este tempo todo cria uma certa proximidade com o leitorado. Tem menina que começou a ler meu blog quando ela tinha 12, 14 anos, e agora está acabando a faculdade. Recebo vários relatos de gente que mudou seu modo de pensar, que era preconceituoso antes e passou a pensar mais livremente. É muita responsabilidade. Também há pessoas, sem dúvida, que se decepcionam com o blog e o abandonam, seja por conta de um post específico ou por me identificarem como membro de uma corrente “inimiga”. Eu sempre tento ser o mais inclusiva possível e não pertenço a nenhuma corrente feminista. Para mim, ser feminista me basta. Repito sempre que não há regras nem normas para ser feminista. Como bem disse uma leitora, se ela quisesse dogmas, entraria numa igreja.

CR – Sendo alvo constante de discurso de ódio e ameaças pela internet como vc compreende a relação entre estar anônimo (em termos de ter sua privacidade pessoal protegida) e ter visibilidade na web?

Lola Aronovich: Eu acho que, sempre que possível, é preferível dar a cara, ser quem você é, sem precisar se esconder por trás de um avatar ou do anonimato. Penso que você é levada mais a sério, é mais confiável, se tiver um nome e um rosto. Por outro lado, desse jeito você está se expondo, e a exposição pode ser perigosa. Eu não consigo nem imaginar como eu poderia ser quem eu sou se, desde o início, eu não fosse a Lola na internet. Teria que ocultar tanta coisa! Não poderia dizer que sou professora universitária, não poderia falar do meu marido. Para aceitar dar palestras, seria bem complicado, se eu quisesse manter o anonimato. Aliás, hoje, com os celulares e suas câmeras, seria impossível. Portanto, penso que você sacrifica muita coisa ao escolher ser anônimo ou um personagem na internet. E claro que você também se sacrifica ao se expor. Eu gostaria que todas as jovens tivessem coragem de assinar o que escrevem com o seu nome, mas não gostaria que ninguém fosse alvo das agressões e ameaças como eu sou.

CR – Muitas vezes vemos na mídia uma contraposição entre o comportamento do indivíduo offline e online, quer dizer, alguns textos afirmam que as pessoas assumem uma personalidade agressiva apenas quando estão atrás de um computador por estarem supostamente anônimas. Você acredita nesta oposição? Até que ponto pela sua experiência pessoal vc percebe a relação entre violência offline e online?

Lola Aronovich: Tem um quadrinho genial do André Dahmer, do Malvados, que vi outro dia. Um cara franzino xinga um fortão de “Corno, burro, fracassado”. O fortão, com as mãos no pescoço do cara, lhe pergunta: “Ficou maluco, cara?” E o homem responde: “Esqueci que não estou na internet!” Creio que este cartum reflete bem o comportamento dos “rambos do teclado”, dos valentões da internet. São no fundo covardes que se aproveitam do anonimato para fingirem uma braveza que, longe do computador, não existe. Talvez o ódio que recebo dentro e fora da internet seja um bom parâmetro. Na internet, recebo dezenas de ofensas por dia, sou ameaçada, caluniada, difamada, fazem montagens com as minhas fotos etc. Nas palestras que dou (foram mais de 150 nos últimos cinco anos) ninguém é agressivo comigo, mesmo os que discordam. É só amor. É óbvio que muito provavelmente as pessoas que vêm às minhas palestras são as que já têm uma opinião favorável sobre mim, mas ainda assim, tenho certeza que vários haters e trolls devem aparecer de vez em quando. Só que eles não têm coragem de vir falar comigo no final da palestra. Num fórum anônimo que me ameaça diariamente, um rapaz postou lá que esteve numa das minhas palestras, veio falar comigo no final, me abraçou, e que eu fui muito simpática com ele. Não tenho como saber se é verdade. Ele ainda escreveu que, se eu soubesse quem ele é na internet e das ameaças que me faz, eu talvez não tivesse sido tão receptiva. Talvez?!

Tirinha nº 1643 do Malvados, mencionada por LolaMalvados, André Dahmer

CR – No Brasil estão sendo discutidas propostas de lei (como as que estão na CPICiber) onde vemos alguns relatores e defensores da PL utilizarem a privacidade como sinônimo de garantia da liberdade de criminosos e de livre circulação do discurso de ódio online. Você acredita que o controle do discurso de ódio online passa pelo controle e supervisão constante do poder público? Resumindo, como você imagina soluçoes para o equilíbrio entre tolerância e discurso de ódio, se é que existem.

Lola Aronovich: É um equilíbrio difícil, de fato. A verdade é que várias empresas já têm todos os nossos dados e acesso às mensagens que trocamos. O Facebook é um exemplo dessa total falta de privacidade. O documentário Freenet fez uma provocação para ilustrar esse cenário que já existe: saiu filmando as conversas que as pessoas têm nos bares e o que elas vêem nos seus smartphones. E lógico que as pessoas se sentiram invadidas. A verdade é que muitos dos misóginos que me atacam não seriam afetados por leis de controle e supervisão. Eles usam instrumentos que não permitem a identificação do IP, criptografam as mensagens, hospedam seus sites de ódio na Malásia. Pra eles, verdadeiros criminosos da internet (estou falando de gente que já foi presa, julgada e condenada por sites de ódio), não mudaria nada.

CR – Você é uma pessoa pública e as ameaças de violência que recebe também são públicas. Sabemos que um dos resultados da violência online é no mínimo a auto-censura do interlocutor, isto é, o indivíduo que pertence à um grupo mais sujeito à situação de violência (mulheres, negr@s, trans, etc) pode preferir não se expressar ou deixar de expressar uma ideia com medo da reação violenta que pode vir a sofrer. Como figura influente para um grande grupo de mulheres, como vem sendo sua escolha de lidar com estas agressões ?

Lola Aronovich: Eu sempre digo que não podemos nos calar. Não vão me silenciar, por mais que tentem. Eu gostaria muito de viver sem essas agressões, mas, como elas existem, não permito que elas ditem minha vida. Não deixo de sair de casa ou mudo de planos por causa das ameaças de morte ou estupro. Não vou cancelar uma palestra porque algum misógino coloca um mapa mostrando a distância onde ele mora e o local da palestra e jura que irá descarregar seu calibre 38 na minha cara no tal dia. Quando algumas ameaças começaram a vir direcionadas ao meu marido e minha mãe, uma senhora de 81 anos que mora conosco, eu fiquei preocupada. Parece muito mais eficaz para desestabilizar um alvo ameaçar as pessoas que ela ama. Mas logo que vi que, mais uma vez, eram ameaças vazias, que não vão se concretizar. Agora, a auto-censura existe. Eu não deixo de me expressar, mas sinto que penso muito mais antes de publicar alguma coisa. Uma consequência é que meus posts são menos espontâneos e bem humorados que aqueles de alguns anos atrás. Eu vi um vídeo de uma palestra em que Anita Sarkeezian (feminista americana que grava vídeos falando sobre o sexismo em games e outros produtos culturais e que ficou mundialmente famosa após ser ameaçada por milhares de misóginos) fala de como as ameaças afetaram sua vida. Ela parece muito abalada no vídeo, não ri, não há alívio. Outro dia eu dei uma palestra na UFRN falando de alguns ataques que sofro, e um professor me disse que se surpreende como eu ainda consigo rir disso tudo. Então há formas diferentes de lidar com esses ataques. Eu acho importante também, como estratégia de defesa, mostrar algumas das ameaças. Porque as pessoas não acreditam, não têm ideia do que enfrentamos.

CR – Você tem algum exemplo de um assediador (ou assediadores que atuaram em grupo) e deixaram de faze-lo a partir de alguma ação? Essa ação foi por sua parte, por parte da polícia, por mobilização na internet, um conjunto de ações?

Lola Aronovich: Houve um masculinista do Mato Grosso do Sul que fez um blog anti-feminista. Em um ano, ele escreveu quinhentos posts contra mim, me difamando, caluniando, fazendo montagens com fotos minhas. Não estou exagerando, foram realmente quinhentos posts, pra você ver o tamanho da obsessão. Quando anunciei que fiz um boletim de ocorrência contra ele, no final de 2014, ele deletou todos os posts sobre mim e deixou o blog visível apenas para convidados. Faz um ano e meio que não tenho notícias desse indivíduo perturbado. Outro caso foi de um professor brasileiro que leciona nos EUA, um homem de esquerda que se dizia feminista e era muito bem-visto na internet. Mas o que ele fazia “escondido” era bem diferente da sua persona pública. Durante dez anos ele mandou fotos não solicitadas do pênis dele para feministas, marcou vários encontros sexuais quando vinha ao Brasil, ia atrás até de menores de idade, e tinha preferência por mulheres casadas, para assim poder humilhar o “marido corno”. Seus emails eram um festival de machismo, e isso de um cara que se passava por grande feminista. Até que um grupo de cerca de três jovens se uniu para desmascará-lo. Uma delas publicou no meu blog um relato sobre seu envolvimento com ele. O post foi muito popular, e o professor ficou bastante queimado, se afastou da internet por um ano e, pelo que se sabe, parou de assediar mulheres. Ele está processando uma turma, eu inclusa, pelo que ele viu como uma difamação orquestrada. Às vezes aparece algum troll que se arrepende, pede desculpas, diz que mudou.

CR – Como é possível pensar um equilíbrio entre a liberdade da expressão online (que gera naturalmente dissenso) e os ataques que tendem a restringir alguns discursos que não se adequam à norma de poder estabelecida (homem, branco, hétero, classe média)?

Lola Aronovich: Eu já fui defensora da liberdade de expressão irrestrita, de que pudessem existir até sites neonazistas. Mas, ao conhecer esses sites, mudei de ideia. Tem muito misógino com tempo de sobra para se dedicar a atacar feministas na internet, e esse tipo de gente não acrescenta nada de útil ao mundo. Já ajudaria bastante se grandes corporações como Facebook, Twitter, YouTube, Google e outras, soubessem identificar discurso de ódio com rapidez. Se esses gigantes agissem rapidamente para remover conteúdo com difamação e ameaças, já seria um avanço. Há tentativas de negociações nesse sentido entre as corporações da internet e as feministas americanas e britânicas, porque a situação está insustentável. Há violência demais contra ativistas, e nada é feito. Por outro lado, esses mesmos grupos organizados que atacam feministas também nos denunciam e tentam derrubar as nossas páginas. Isso aconteceu com a maior página feminista do Facebook no Brasil, a Feminismo Sem Demagogia. Grupos misóginos se uniram para derrubar a página, e o Facebook acatou a denúncia e eliminou a página. A página ficou fora do ar por mais de um mês, até que a assessoria do deputado federal Jean Wyllys conversou com o FB e a página voltou. O detalhe é que o post que gerou a onda de denúncias foi um parabenizando uma mulher trans por ter entrado na universidade, ou seja, difícil acusar a página por discurso de ódio. Há uma vontade grande de criminalizar feministas. Há dois processos do Ministério Público Federal contra mim, ambos de apologia ao crime. Um é referente a um guest post que publiquei em 2013 de uma leitora que fez um aborto. Quer dizer, praticamente toda página feminista pode ser indiciada por apologia, pois lutamos pela legalização do aborto. O que fazemos, pra organizações de direitos humanos, não é discurso de ódio. E proibir que a gente se manifeste a favor da descriminalização do aborto fere totalmente a liberdade de expressão. O outro processo do MP também tem relação com aborto. Em outubro do ano passado, misóginos criaram um site com discurso de ódio no meu nome. Tinha fotos minhas, link pro meu currículo Lattes, meu endereço e telefone residencial em cada post. E o site pregava coisas que eu jamais defenderia: aborto só para fetos masculinos, infanticídio e castração de meninos, queima de bíblias. Num post “eu” me vangloriava de ter realizado um aborto numa aluna em sala de aula, na UFC! E esse site viralizou, graças à divulgação de figuras reacionárias conhecidas, como Olavo de Carvalho e Roger Moreira, do Ultraje a Rigor. Eles sabiam que o site era falso e divulgaram mesmo assim. Antes disso, na mesma semana em que o site foi lançado, um dos misóginos que criou o site me denunciou ao MP como autora do site – e o MP acatou a denúncia! É surreal. Não só não contamos com nenhum tipo de proteção nas redes, como somos criminalizadas por órgãos que deveriam investigar quem nos ataca. No fundo, grupos conservadores não estão interessados em controlar o que nós ativistas escrevemos, pois o que falamos não importa – eles criam suas próprias narrativas sobre nós. Tanto que eu não costumo ser atacada pelo que escrevo. Eles precisam inventar sites e tuítes falsos para me atacar. A narrativa que eles fazem de mim não condiz em nada com o que escrevo. O que eles querem mesmo é que a gente desapareça, se cale. Eles comemoram toda vez que uma feminista é silenciada.

Lola Aronovich é professora da UFC, doutora em Literatura em Língua Inglesa pela UFSC e, na definição de um troll, ingrata com o patriarcado. Em seu blog trata de feminismo, cinema, literatura, política, mídia, bichinhos de estimação, maridão, combate a preconceitos, chocolate, e o que mais me der na telha. Twitter: @lolaescreva.

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