Privacidade e Políticas Públicas
Entrevista com Céu Cavalcanti, psicóloga e pesquisadora transgênero
10/09/2016
A Coding Rights entrevista Céu Cavalcanti, psicóloga e pesquisadora transgênero1:
CR: Redes sociais como o Facebook adotam políticas rígidas em torno dos chamados “nomes reais”. Como você acha que isso pode afetar vidas e processos de construção de identidade? Vê alguma relação desta questão com a dos nomes sociais?
Céu Cavalcanti: Totalmente. A concepção de “nome real” fala da legitimação de todo um aparato de Estado que visa a estabilização de identidades e formas de viver. Podemos pensar que quando o facebook e outras mídias adotam uma ideia de que há um nome real para além da autodeclaração que a pessoa usuária fez, pressupõe uma verdade sobre o sujeito que seria anterior e superior às formas que a pessoa escolheu se nomear. No caso específico do facebook lembro que muitas pessoas trans* receberam notificação exigindo uma documentação que comprove aquele nome sob ameaça de exclusão do perfil. Isso é muito grave, pois reforça aquele velho mito de um estado originário imutável por toda a vida, ou seja, é como se com esse ato estivessem dizendo que se a sua família compulsoriamente decidiu que você é joão e legitimou isso perante o Estado, você vai ser joão para o resto de sua vida! Caricaturei um pouco, mas esse é o imaginário que tanto em rede quanto fora dela deslegitima a existência de pessoas trans* como se fossem eternamente “homens que pensam que são mulheres” ou no caso dos homens trans “mulheres lésbicas muito masculinizadas”. Legitimar um nome que escolhemos para nós fala em suma da aceitação e do reconhecimento do nosso processo e da legitimação social de que transicionar e escolher formas mais autônomas de se colocar no mundo é possível. Negar esses movimentos que não são específicos das pessoas trans* é apelar pra um legalismo familista que nega as possibilidades de reinvenção nos nossos campos identitários. E o facebook, ao mapear “nomes estranhos” e exigir foto do RG vem alimentando essa lógica.
CR: Na sua dissertação você comenta sobre a campanha #meunomeimporta e como houve certo incômodo por parte dxs trans em mostrar na campanha tanto cis quanto trans. A argumentação de pessoas trans na internet que se iniciou com a proposta de suspensão do uso de nomes sociais por pessoas cis no #nomesocialedireito tem sido exatamente a contradição que existe entre políticos conservadores que apoiam a suspensão da lei e o uso de nomes sociais feitos por eles próprios, superando a questão de cis/trans e propondo uma compreensão mais ampla de nome social. Como você vê essa diferença de estratégias de mobilizações?
Céu Cavalcanti: Sim, problematizei essa questão por ela remeter aos entraves dos locais de fala e nas entrelinhas o policiamento dos processos identitários que decorre de certa leitura de como operam locais de fala. Para as pessoas da campanha, precisaria estar mais objetiva a questão de que essa não é uma problemática que afetava diretamente aquelas pessoas cis que estavam nos cartazes, de modo que foi gerado um debate sobre protagonismo das pautas trans* bem interessante e necessário. Nome social é uma questão que transcende a relação cis/trans e fala da sustentação de processos de vida onde o nome imposto por algum motivo, deixa de fazer sentido. Porém, a ironia de que muitos dos deputados que querem coibir o direito ao nome social usarem nome social pode ser pensada a partir de marcadores interseccionais que apontam para posições de privilégio. Para esses deputados, a verdade sobre si é inquestionável e o nome que escolhem é publicamente aceito sem nenhum questionamento ou constrangimento. No caso de praticamente todas as pessoas trans* (infelizmente acredito que aqui posso generalizar) em algum momento das transições somos deslegitimadas em nome de uma percepção normativa de gênero. Eu própria já ouvi algumas vezes de pessoas “amigas” a típica frase “-ah, mas para mim você sempre vai ser o fulano”. Me questiono então quais marcadores tornam a verdade das autodeterminações de uns aceita e de outras uma falácia sempre posta a provas. Entendo que o segmento trans* é a população que em suma reivindica o direito ao nome social por toda uma problemática que se materializa no acesso e permanência em diversas instituições. Desse modo, para além de marcadores identitários há uma diferença se não nos usos, mas nas consequências da impossibilidade de uso de nome social entre pessoas trans* e cis. Entendo nome social como um dos direitos mais básicos a que todas as pessoas deveriam ter acesso. Autodeterminar-se passa a ser uma problemática quando uma série de aparatos burocráticos nos captura e vai criando um cenário onde nossa vida coletiva é possibilitada unicamente a partir deles. Entender-se e colocar-se no mundo com um nome que não tem legitimidade legal acaba sendo como que uma pirataria dos códigos sociais legitimados. Infelizmente, quando o nome de registro centraliza todos os processos institucionalizados em nossa vida, algumas barreiras tornam-se ainda mais difíceis, como o acesso a universidade, ao trabalho e a saúde. Creio que seja necessário de fato entender que os efeitos da supressão desse direito pesam de formas diferentes para pessoas cis e trans, embora esta seja uma pauta que precisa ser entendida e assimilada por todas as pessoas, incluindo as que ocupam as casas legislativas.
CR: Como você percebe as recentes discussões em torno do nome social no âmbito federal do Brasil?
Céu Cavalcanti: Bom, durante o meu processo de pesquisa, entendi que algumas políticas coletivas muitas vezes tornam-se barganha no contato com determinados grupos. E de modo inclusive perverso, percebi que a existência de marcos legais não garante em absolutamente nada a efetivação desse direito. Entendi, portanto junto à teoria de um filósofo italiano chamado Agamben que por vezes, as estruturas coletivas criam estratégias de inclusão-excludente. Uma inclusão pela metade ou uma cidadania precarizada, podemos pensar assim. Penso então que em todas as esferas, as políticas de garantia de nome social para pessoas trans* podem (e não raro o fazem) se converter numa inclusão-excludente . Considero então que junto com as políticas de nome social, se faz necessário pensar estratégias que garantam que esse direito seja de fato respeitado. Uma vez que lidamos cotidianamente com uma sociedade transfóbica que considera que a existência das pessoas trans* é da ordem do erro e da patologia, é comum encontrar pessoas que simplesmente se negam a respeitar. Seja em nome do preconceito mascarado de discurso religioso, seja em nome de puro preconceito desmascarado. As recentes discussões sobre limitar os direitos das pessoas trans* apontam para uma preocupante onda de conservadorismos crescentes que, somando forças ao golpe de estado que estupefatas acabamos de assistir, parecem vir ganhando forças. Percebo os recentes ataques que bancadas fundamentalistas vem fazendo a decretos de uso de nome social como um joguete por parte desses grupos que em vésperas de eleições municipais querem “mostrar serviço” aos seus eleitores. O problema é que todas essas ações são pensadas a partir do discurso “defesa da família e da moral” e contra a “ideologia de gênero”. O grupo fundamentalista vem operando um deslocamento discursivo onde até pouco tempo atrás falavam abertamente em curar lgbt’s como esse é um tema problematizado e em algumas instâncias passível de punição (como a psicóloga cristã – ela se denomina assim – Marisa Lobo que teve o registro cassado por alguns meses num processo ético). Essas pessoas param então de usar a ideia de ”cura” e investem pesadamente na noção de “ideologia de gênero”. Cria-se no imaginário popular um estranho conceito que mescla posições anti-feministas e anti-diversidade com concepções rígidas de sociedade. Pesssoas trans* são o segmento mais atingido por esse discurso uma vez que o argumento mais comum é que “querem ensinar os meninos a ser meninas”. Para uma parcela grande de fanáticos, lutar contra os “perigos da ideologia de gênero” de modo muito preocupante se converte praticamente em lutar contra os poucos direitos que a população trans* conquistou. Nome social é um deles, mas não me espantaria se em seguida outras pautas comecem a ser atacadas, como o próprio acesso a saúde e assistência social.
CR: Muitas vezes vemos na mídia uma contraposição entre o comportamento do indivíduo offline e online, quer dizer, alguns textos afirmam que as pessoas assumem uma personalidade agressiva apenas quando estão detrás de um computador por estarem supostamente anônimas. Você acredita nesta oposição? Até que ponto pela sua experiência pessoal vc percebe a relação entre violência offline e online?
Céu Cavalcanti: Creio que essa suposta oposição pode ser pensada tomando emprestado o conceito de banalidade do mal, trabalhado por Hannah Arendt. Nos anos 70 ela trabalha esse conceito para explicar como foi possível o holocausto, mas fazendo as devidas contextualizações, Hannah afirma que o pior mal é aquele que é feito por ninguém, onde as pessoas comuns, cidadãos, pais, mães, colegas de trabalho, escondidas e de certo modo protegidas por uma estrutura superior a elas, abdicam do senso crítico, da responsabilização e por consequência da culpa e tornam-se capazes de cometer atrocidades. A internet gera um campo de anonimato que permite que as pessoas reproduzam todas as violências estruturais possíveis sem ter que “estar cara a cara” com a situação de agressão. A meu ver, esse fato facilita a expressão disso que podemos pensar como microfascismos. Posturas normativas entranhadas nas constituições sociais e subjetivas que não suportam de maneira alguma a diferença.
Porém, se por um lado creio que a vida online traz algumas facilidades não creio tratar-se de uma oposição. Posicionamentos fascistas não se iniciam junto com as conexões de rede. Eles falam sim de posturas que as pessoas assimilam e levam onde quer que seja e se na internet se expressam de forma direta e sem pudores, em outros espaços se expressa de maneiras distin tas como olhares de nojo e reprovação, risos, chacotas e piadas com intenção de humilhar. Com a menor oportunidade, aquela postura guardada para comentários encontra espaço e se manifesta no mundo off-line. Creio que todas temos exemplos em nossas próprias famílias daqueles comentários de ódio que surgem em inocentes almoços dominicais de que lgbt’s são contra a natureza e que não deveriam existir, que pessoas negras são inferiores, que mulheres são objetos que deveriam ficar em casa, cuidar do marido e dos filhos etc. Desse modo, consigo enxergar continuidades entre violências dentro e fora da rede, pois elas refletem as estruturas violentas que tentam nos constituir enquanto sujeitos. Lembro uma autora chamada Sayak Valência que defende que na nossa organização coletiva patriarcal, capitalista, heterociscentrada, a violência (tanto física quanto simbólica) é um elemento que dorsiliza a construção de nossas subjetividades se convertendo assim num dos pilares de manutenção do status quo e das desigualdades sociais. (incluindo desigualdades raciais, de gênero, econômicas). Discursos e posturas de ódio não são, portanto, exclusividade da rede e as tais personalidades agressivas, que gosto de pensar junto como microfascismos estão presentes em todos os momentos da vida coletiva, apenas esperando brechas para se manifestar.
CR: No Brasil estão sendo discutidas propostas de lei (como as que estão na CPICiber) onde vemos alguns relatores e defensores da PL utilizarem a privacidade como sinônimo de garantia da liberdade de criminosos e de livre circulação do discurso de ódio online. Você acredita que o controle do discurso de ódio online passa pelo controle e supervisão constante do poder público? Resumindo, como você imagina soluções para o equilíbrio entre tolerância e discurso de ódio, se é que existem.
Céu Cavalcanti: De maneira alguma. Instrumentalizar o que alguns autores chamam de sociedade do controle através de marcos legalistas só fomenta a criação de formas de regulação dos discursos dissonantes. Essa proposta se torna especialmente perigosa em tempos em que uma onda conservadora ganha espaço na cena política brasileira e a partir daí vai se capilarizando para praticamente todos os setores da vida coletiva. A questão da supervisão e controle constante pelo poder público me abre duas questões fundamentais: Quem vai receber o poder de controlar? E sob quais pressupostos esse grupo vai criar restrições? A meu ver essa proposta mascara posicionamentos muito mais perversos que abrem precedentes para limitar o acesso e o compartilhamento de informações. Minha preocupação com essas duas questões (quem e como) se amplia quando recordo que em vários estados exitem PL’s que querem proibir toda a rede educacional de fazer qualquer menção a gênero e sexualidade. Para os fundamentalistas redatores desses projetos de lei, trata-se de uma forma de “proteger” a juventude. Aponto com isso que o discurso de proteção é perverso e muitas vezes é usado para encobrir posturas puramente ideológicas que trabalham para manter posições hegemônicas.Como comentei na questão anterior, acredito que o discurso de ódio é a materialização sintomática de uma estrutura fascista que atravessa todas e todos nós. Banir esses discursos da rede é como jogar essa questão para debaixo do tapete, não vai solucionar nada. Uma solução mais eficaz passaria necessariamente por estratégias de reeducação de toda uma massa cotidianamente ensinada a não pensar sobre as consequências de suas intolerâncias. Nosso país colonizado segue com marcas estruturalmente racistas, machistas, eurocentradas e “apagar” esses comentários é apagar a constatação de que somos ensinadas a ser intolerantes. Debates constantes, reorganização dos currículos escolares, democratização da mídia são atos que poderiam contribuir para a disseminação de alteridades mais tolerantes. Pensando que apesar do acesso a internet, grande parte da população tem ainda na televisão um ponto de referência, não adianta tentar regular o ódio nos meios virtuais enquanto a tv aberta segue objetificando mulheres, estereotipando e diminuindo pessoas negras e pessoas nordestinas, propagando ódio a lgbt’s. Uma solução para essa questão, passaria portanto pela análise das instâncias que sustentam e propagam uma pedagogia do ódio e uma reorganização profunda dessas instâncias. O mal não está nas “liberdades de expressão” de modo que tomar como ato preventivo restringir essas liberdades não garante nada. A questão é mais ampla e complexa e fala de uma estrutura que apesar de fazer uso dela, é muito anterior e para além da própria internet.
CR: Qual a importância para você de ativismos interseccionais que têm encontrado interlocução na internet?
Céu Cavalcanti: A internet tem sido fundamental nos ativismos dos últimos anos. Como exemplo basta ver que espaços de articulação se tornaram mais possíveis como os grupos que mais tarde criaram o transfeminismo.com ou mesmo as organizações de blogueiras negras. Num contexto de ativismos que não encontram lugar nos espaços políticos já viciados por um modo único de organização, a internet pode ser um lócus estratégico de agregação, onde pessoas mesmo geograficamente distantes podem construir juntas. Ativismos interseccionais podem usar desse espaço como pontos de confluência e compartilhamento de informação que de outros modos, sem apoios institucionais e sem dinheiro, seria muito mais difícil. Um exemplo que esbarrei recentemente é quando um grupo de feministas negras de salvador criam uma rede social http://ubuntu.desabafosocial.com.br onde é possível organizar videoconferências, fóruns de debates, grupos de estudos etc. Nessa caso a internet torna-se ela própria uma ferramenta a favor das lutas sociais interseccionais promovendo espaços democráticos e fazendo o debate chegar em pessoas independente de sua localização geográfica. Se pensarmos ainda que as periferias hoje tem acesso à internet, esse instrumento potencializa um pouco mais o atravessamento de fronteiras ao chegar em grupos que muitas vezes ainda não conseguem acessar eventos nos espaços universitários.
1 Céu Cavalcanti é psicóloga e pesquisadora do Labeshu (Laboratório de Estudos da Sexualidade Humana) e integra o grupo de trabalho em gênero e sexualidade do Conselho Regional de Psicologia 02. Concluiu o mestrado em psicologia pela UFPE com uma pesquisa sobre políticas de nome social. Se interessa pelo debate das teorias queer, dos estudos da subalternidade e das teorias (pós/des)coloniais em interface com perspectivas transgêneras.
Tags: A resposta dos meios privados, boletim14, Céu Cavalcanti
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