Privacidade e Políticas Públicas

Divulgação não consentida de conteúdo sexual privado e os meios de comunicação

10/09/2016

Por Fernanda Gómez Balderas | #Boletim14

Imagine abrir seu perfil no Facebook, Twitter ou Instagram e deparar-se com uma imagem sua de teor sexual com seu nome, telefone e e-mail… ou que, um dia, um amigo ou amiga o avisa que encontrou um vídeo seu com teor sexual em uma página de pornografia. Histórias como essas não representam fatos “isolados”, causados por uma “minoria” de pessoas, mas, sim, refletem a lógica de gênero que se manifesta em diferentes contextos da vida diária: profissional, familiar, escolar e amoroso, para citar alguns. Na minha opinião, a explosão das “tecnologias da informação e de comunicação” (TIC) impactou a forma de perpetuar a violência de gênero habitual, apresentando novas discussões que começam com o alcance global das novas tecnologias, especialmente o uso das redes sociais por meio da Internet.

O fenômeno a que me refiro é o que chamo de “divulgação de imagens ou vídeos privados com teor sexual sem o consentimento da vítima”.1 O que entendo por imagens ou vídeos privados com teor sexual? Não são só aqueles em que as vítimas aparecem despidas ou praticando atos sexuais, mas também aqueles em que aparecem vestindo roupas de baixo ou em posições “sugestivas”. É necessário esclarecer que o entendimento do componente “sexual” é certamente dinâmico e varia no tempo e no espaço. Atualmente, é possível encontrar muitas imagens que podem ser consideradas de “teor sexual” nas próprias redes sociais das pessoas (por exemplo, fotos em que as mulheres aparecem de biquíni ou semidespidas na cama). O componente “sexual” a que me refiro, portanto, depende do segundo componente que menciono: tem que se tratar de material com teor sexual “privado”. Ou seja, de material que a própria vítima não divulga publicamente, mas apenas em contextos de “privacidade” ou “intimidade”. O fenômeno que me interessa, portanto, está relacionado à violação da privacidade.

Agora, quem são as vítimas? Mulheres. Sim, de acordo com estudo do Cyber Civil Rights Project2 (Projeto de Direitos Civis Cibernéticos), 90% das vítimas desse fenômeno são mulheres3, das quais cerca de 67% têm entre 18 e 30 anos4. Apesar de os homens também poderem ser vítimas desse fenômeno, os números são claros e mostram que as mulheres estão sujeitas a ataques com maior frequência. Nesse sentido, acho que se pode dizer que, na maioria dos casos envolvendo tanto homens como mulheres, a divulgação está relacionada ao gênero, ou seja, às concepções que temos da sexualidade feminina e/ou masculina. As mulheres “devem” ser “recatadas” e não mostrar que são seres sexuais5 (embora sejam sexualizadas; basta observar a publicidade cheia de mulheres com roupas provocativas promovendo produtos, por exemplo), caso contrário, são apontadas por seu comportamento “imoral” e classificadas como “prostitutas”, “putas” e “piranhas” pelos demais membros da sociedade. Por outro lado, os homens “devem ser machos”, caso contrário, sua “virilidade” é atacada (quantas conversas já escutamos sobre o tamanho do pênis e a sua relação absurda com a “virilidade”) e são até mesmo comparados a mulheres para desmerecer a sua conduta (os clássicos: você corre como uma menina, não chore como uma mulherzinha).

Na sociedade, persiste a ideia de que, quando você envia uma foto, perde o direito de decidir o que o receptor poderá fazer com ela. Ainda leio e ouço comentários de pessoas que sugerem: foi culpa da menina ter tirado uma foto sua e a enviado ao namorado, foi culpa da mulher casada gravar um vídeo tendo relações sexuais com o marido. Sempre pensei que essas posições que culpam a vítima6 equivalem a: se você não usasse vestidos tão curtos, ele não a teria violentado; se você não tivesse se embriagado, não a teriam bolinado; se não tivesse saído da sua casa, não a teriam assediado… Tratam-se de comentários equivocados, que buscam legitimar e justificar condutas que não podem ser toleradas e devem ser punidas.

Ao refletir sobre a reprodução de estereótipos, os papéis de gênero e o que podem fazer homens ou mulheres, notei o poder que possuem os meios de comunicação para divulgar uma ideia ou maneira de pensar na sociedade. Por exemplo, os homens podem exercer plenamente sua sexualidade e serem vistos como heróis perante as demais pessoas, mas isso jamais será bem-visto quando exercido por mulheres. Quantas pessoas realmente questionam o que dizem as notícias ou o que leem nos jornais? Infelizmente, não o bastante.

Os meios de comunicação desempenham um papel muito importante na formação de opinião dos cidadãos em relação a qualquer assunto político, desportivo ou artístico e possuem a capacidade de permear o imaginário coletivo de forma positiva ou negativa. Infelizmente, na maioria das notícias relacionadas à divulgação de imagens e vídeos privados com conteúdo sexual sem o consentimento da pessoa, a tendência dos apresentadores e jornalistas é de se posicionarem de forma inadequada, já que culpam a vítima por “colocar-se” nessa situação, e pouco é feito para apontar o responsável, aquele que divulgou o material íntimo sem nenhum consentimento.

Em episódio ocorrido em 2015, John Olivier7 falou em seu programa sobre a violência de gênero on-line e apresentou uma compilação de vídeos de noticiários americanos nos quais a constante era “sugerir que as mulheres não tirassem fotos despidas para acabar com o problema”. Essa é realmente a solução? Obviamente que não. É preciso entender que o problema é a violação do direito de outra pessoa à privacidade quando se divulga um arquivo que, mesmo tendo sido gerado com o consentimento da pessoa que nele aparece, não deve ser reenviado ou publicado sem consentimento. Nesse sentido, quando uma pessoa envia uma imagem com teor sexual para outra há uma expectativa de confidencialidade; o consentimento dado dentro de um contexto não pode ser transferido a outro contexto.

Mas e se os arquivos nunca foram enviados e estavam armazenados na nuvem? Essa hipótese teve muita repercussão em meados de 2014: hackers acessaram ilegalmente as contas no iCloud de Jennifer Lawrence8 e outras atrizes e cantoras americanas e publicaram ilegalmente fotos privadas com teor sexual das mesmas em sites como o 4chan e Reddit. Sim, elas também sofreram revitimização por parte dos meios de comunicação e da sociedade. Quero agora salientar que há também casos documentados de mulheres que foram vítimas desse fenômeno e sequer “posaram para a câmera”. Por exemplo, Erin Andrews9, uma repórter da ESPN, foi gravada secretamente por um assediador que se hospedou no quarto ao lado do seu em um hotel; o vídeo de vários minutos, no qual ela aparecia nua, foi carregado em sites pornográficos e reproduzido milhões de vezes. Qual seria uma razão “válida” para culpar Erin pelo que aconteceu? Nessa situação, não há lugar para frases como: Por que você se fotografa! Quem pensaria em enviar fotos suas nuas para o namorado? Não. Nesse caso, não houve sequer a intenção da vítima de fazer uma selfie nua ou gravar um vídeo mantendo relações sexuais com outra pessoa. O que aconteceu foi da exclusiva responsabilidade do agressor10, o homem que, além de gravá-la sem o seu consentimento, também divulgou o vídeo on-line.

Ao analisar vários conteúdos produzidos pelos meios de comunicação, encontrei alguns pontos que gostaria de compartilhar. Em princípio, prevalece a orientação11 (ou melhor, advertência) de não se fotografar nem gravar vídeos com teor sexual; ou seja, acredita-se que, evitando tirar fotos, sua integridade e reputação não serão comprometidas. Isso, como explicado acima, não garante que não existirão arquivos criados sem o seu consentimento, além de continuar a impor limitações à vítima (não faça isso, nem aquilo).

Outra característica que me pareceu relevante é que, no caso do México, tem sido feita muita menção a situações em que menores de idade estiveram envolvidos e, raramente, se observa a prevalência do fenômeno em mulheres adultas. Ao se concentrar em adolescentes, o termo sexting é erroneamente usado para se referir tanto ao envio consentido de imagens com teor sexual entre duas pessoas, quanto à sua posterior divulgação a terceiros; essa segunda parte, como expliquei, pertence ao fenômeno que trato neste artigo. Nesse contexto, o envio de fotos é denominado “a nova prova de amor”12, e sugere-se, novamente, não atender a esses pedidos. Por outro lado, embora pareça-me muito importante prevenir e combater o fenômeno entre os menores de idade, não deve ser esquecido que há também casos em que as vítimas são adultos vitimados por seus ex-parceiros com quem mantinham um relacionamento estável.

Apesar de tudo o que foi exposto acima, nem todas as informações são negativas. Os meios de comunicação também começaram a promover a cultura digital13, a pesquisar sobre o assunto e a alertar as crianças sobre os riscos de navegar na Internet e de entrar em contato com pessoas que não conhecem na vida real. Essa abordagem parece-me positiva. De fato, uma das maneiras de se evitar que ocorram casos de distribuição de imagens privadas com teor sexual sem consentimento é precisamente por meio da educação. Reitero que a educação não deve girar em torno daquilo que nós, mulheres, supostamente não devemos fazer — tirar fotos, gravar vídeos, expressar nossa sexualidade da maneira que desejamos —, mas basear-se no que indica o quadro jurídico. Em outras palavras, os programas e campanhas devem concentrar-se no respeito ao direito à privacidade dos outros, ensinar que, se alguém compartilhar conosco uma fotografia privada com teor sexual, não devemos reenviá-la, e entender que homens e mulheres são livres para viver a sua sexualidade sem estarem presos a estereótipos ou papéis de gênero.

Por fim, compartilho algumas dicas para o caso de alguém, infelizmente, vir a ser vítima da disseminação de imagens e vídeos privados com teor sexual sem consentimento. Além disso, incluo várias dicas para evitar que o fenômeno continue a se propagar.

Aconteceu comigo, o que devo fazer?

  • Faça imediatamente capturas de tela dos arquivos que estão on-line, bem como dos links eletrônicos.
  • Busque orientação das autoridades. No caso da Cidade do México, há uma unidade de polícia cibernética14 que pode fornecer orientação quanto à apresentação de uma denúncia ao Ministério Público. Em relação ao Brasil15, existem departamentos de polícia especializados em crimes cibernéticos em vários estados.
  • Se você tem sofrido assédio por outra pessoa, faça também capturas de tela e de dados de redes sociais, e-mails e números de celular, conforme apropriado.
  • Entre16 em contato com os administradores do site onde as fotos estão armazenadas e exija que o conteúdo seja removido17.

Recomendações para prevenção:

  • Altere frequentemente as senhas de todas as suas contas e procure usar números, palavras e sinais. Evite usar a mesma senha em mais de duas contas.
  • Se receber uma fotografia de outra pessoa, não a distribua por nenhum meio e, de preferência, apague-a.
  • Se enviar fotos, certifique-se de que existe uma relação de confiança com essa pessoa.
  • Mais recomendações18 podem ser encontradas aqui.

Finalmente, não vou lhe dizer que “não tire fotos”, pois, como mencionei anteriormente, isso é equivalente a dizer “não use saias ou roupas apertadas” para “evitar” o abuso sexual. Não se trata de culpar e punir as vítimas, mas de punir o comportamento ilegal.

Caso tenha perguntas, comentários e outros, encontro-me no Twitter: @Fer_gom_b

Fernanda Gómez Balderas é estudante do último semestre do curso de Direito no Centro de Investigación y Docencia Económicas (CIDE). Participou como assistente de pesquisa no projeto de avaliação do marco normativo e políticas públicas sobre tabaco, álcool e dieta para a Organização Panamericana da Saúde no O’Neill Institute for National and Global Health da Universidade de Georgetown em Washington, D.C., E.U.A. Também participou de um intercâmbio na Faculdade de Direito da Universidade McGill em Montreal no Canadá. Entre os temas que pesquisa estão a mutilação genital feminina, a ¨barriga de aluguel¨, sexting, violência de gênero online (principalmente a divulgação de imagens sexuais sem consentimento), entre outros. Atualmente é estagiária da Suprema Corte da Justiça Mexicana.

1 Entre os termos usados para se referir a esse fenômeno, equivocados na minha opinião, encontram-se: sexting (divulgação de conteúdo erótico e sexual por meio de celulares), revenge porn (pornografia da vingança) e sextorsão.

10 Durante o julgamento, discutiu-se a possível responsabilidade do hotel por não agir com diligência e hospedar o indivíduo no quarto ao lado, sem perguntar previamente a Erin Andrews se ela estava de acordo. O indivíduo, no momento da chegada no hotel, perguntou diretamente pelo número do quarto de Erin.

17 No caso do Facebook, Twitter, Microsoft e Google, já foram tomadas as medidas para remover o conteúdo ou excluir o link para que não apareça no buscador, conforme seja o caso.

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