Privacidade e Políticas Públicas
O caso da CPICiber no Brasil: discurso de ódio e outros crimes cibernéticos como porta de entrada para censura e vigilância
10/09/2016
Por Lucas Teixeira, em colaboração com Joana Varon | #Boletim14
Entre agosto de 2015 e maio de 2016, uma comissão especial da Câmara dos Deputados do Brasil investigou atividades criminosas online. A Comissão Parlamentar de Inquérito de Crimes Cibernéticos, ou CPICIBER como ficou conhecida, teve início com o intuito legítimo de investigar fraudes bancárias e tráfico de pessoas e até terminou com algumas medidas positivas de educação em segurança da informação, mas deixou um legado perigoso para os direitos fundamentais que a comissão propôs-se a proteger. Nesse caso, encaixam-se algumas propostas que visavam tratar de crimes contra a honra, ou do que pode ser considerado “discurso de ódio”.
Ainda que caiba ao poder público, e ao legislativo, proteger seus cidadãos, a proteção de direitos deve vir de maneira balanceada para não prejudicar outros direitos correlatos.
CPICiber, suas audiências e o “ódio”
O deputado Espiridião Amin, do partido conservador PP, foi entitulado relator da CPI, com a tarefa de acompanhar as reuniões da comissão e elaborar seu relatório final. Na segunda reunião da Comissão, o deputado Jean Wyllys, do partido de esquerda PSOL, e alvo recorrente de ofensas, em parte decorrentes de preconceito contra sua homossexualidade declarada, destacou: “é fundamental que esta CPI enfrente os crimes virtuais de ataque à honra, de destruição de reputações, de difamação, apologia à pedofilia, homofobia para que o escopo desta CPI não fique só nos crimes contra a propriedade e nos crimes financeiros”.
A intenção de proteger as pessoas contra crimes exercidos pela expressão, também encontrados no mundo *offline*, mas sem dúvida amplificados pela Internet, é louvável. Mas não foi bem esse o resultado alcançado. Diante da complexidade dos temas que cabem sob a denominação “crimes cibernéticos”, o relator criou quatro sub-relatorias. Três delas tinham denominação e foco suscinto: “Instituições financeiras e comércio virtual”; “Crimes contra a criança e o adolescente” e “Segurança cibernética no Brasil”. Já a quarta, que deveria atender à demanda do deputado Jean Wyllys, teve um nome bastante particular: “Violações a direitos fundamentais e criação de perfis falsos ou satíricos com o objetivo de praticar subtração de dados, crimes contra a honra, inclusive injúrias raciais, políticas, crimes de racismo, crimes contra homossexuais, estelionato, extorsão e outros ilícitos penais, intimidação, intimidação sistemática (bullying) e referências depreciativas repetidas a determinada pessoa”.
Desde a denominação da relatoria já se percebe certa confusão, ou no mínimo dificuldade, de se lidar de maneira específica com crimes contra a honra no meio virtual, tema a que se referia o deputado Jean Wyllys. E, se o objetivo principal era atender uma demanda da sociedade para proteger vítimas de crimes contra honra ou de preconceito, é notável perceber que no decorrer das reuniões e audiências públicas da CPICIBER não se ouviu perpetradores ou mesmo as próprias vítimas deste tipo de ataques. O sub-relator, deputado Daniel Coelho, chegou a convidar pessoas alvo de casos notórios de “discurso de ódio”, perseguição ou vazamento de fotos íntimas, mas nenhuma compareceu, e suas ausências foram justificadas formalmente por “compromissos pessoais já assumidos”.
As únicas pessoas envolvidas em casos desse tipo que compareceram às audiências, o dono da conta humorística Dilma Bolada e representantes de movimentos contra a presidenta, não tiveram a oportunidade de contribuir muito para o debate em torno do tema. Isso porque, por serem representantes de lados opostos em um momento de extrema polarização política entre aqueles pró e anti-impeachment, esta reunião específica torno-se apenas um palco deste embate, que nada tinham a ver com crimes cibernéticos.
A ativista anti-PT Beatriz Kicis, que paralelamente a seu trabalho como procuradora pública, integra o movimento pró-impeachment Revoltados ON LINE e publica vídeos críticos ao PT e ao que chama de “doutrinação” da “ideologia de gênero”, usou seu tempo da sessão para falar sobre sua luta contra o governo do Partido dos Trabalhadores e o Foro de São Paulo, que disse considerar parte do plano do PT de criar um regime comunista totalitário em toda a América Latina.
Por outro lado, o deputado Paulo Pimenta, do PT, partido da presidenta, denunciou uma notícia veiculada pelo Revoltados ON LINE acusando-o falsamente de ser o dono da Boate Kiss, que ficou famosa no Brasil após o seu trágico incêndio. Disse que o grupo é “uma organização criminosa que dissemina o ódio e a mentira na Internet, que alimenta o preconceito na sociedade”, citando também episódios onde o Revoltados ON LINE publicou sátiras machistas de Dilma Rousseff e de Marcela
Temer, esposa do vice-presidente Michel Temer.
O deputado bem que tentou trazer ao debate questões que vão ao cerne do problema do discurso de ódio, considerando que o mesmo limita a liberdade de expressão e alimenta a violência, principalmente contra a vida de pessoas já discriminadas por gênero, etnia ou classe social, bem como minorias sexuais, políticas e religiosas:
“Cada vez que um cidadão é espancado na rua, isso é fruto desse discurso de ódio, que organizações como essas promovem na sociedade através da Internet, através da mentira. É a perseguição e o discurso de ódio contra pessoas inocentes.
[…]
Cada vez, Sra. Presidente [da CPI], que uma pessoa homossexual, um travesti é espancado, na rua ou em qualquer lugar, é porque existem figuras públicas e organizações criminosas como essa, que estimulam o ódio e a homofobia na sociedade.”
Mas, em vez de um debate racional sobre o problema, no entanto, o que aconteceu foi uma disputa política. Paulo Pimenta foi interrompido diversas vezes em seu discurso por deputados de oposição à Dilma Rousseff. A deputada Alice Portugal, do Partido Comunista do Brasil, também teve suas manifestações de apoio à discussão do tema interrompidas; a convidada Beatriz Kicis chegou a dizer que sente orgulho de que suas falas “maltratam e ofendem alguém que seja do Partido Comunista do Brasil”.
O deputado Jair Bolsonaro, conhecido por fazer piadas homofóbicas e misóginas e por louvar a memória de um torturador e da ditadura militar durante a votação de impeachment da presidenta na Câmara, afirmou que o “maior crime que se pratica hoje em dia é através da ideologia de gênero, que é maciçamente explorado na Internet”.
Portanto, numa triste ironia, o pequeno espaço em que a discussão em torno do “discurso de ódio” poderia ser feita acabou virando palco de manifestações de homofobia, transfobia e intolerância, comemoradas e compartilhadas online pelos seguidores dos movimentos acusados de propagá-las.
Deputados pró-impeachment tiram fotos com “pixulecos” (um boneco com a cara do ex-presidente Lula vestindo roupa de presidiário que ficou famoso em protestos contra o PT), enquanto apoiadores do Revoltados ONLINE vibravam e cantam músicas contra o partido, após a audiência pública terminar
Mais de três meses depois, já em fevereiro de 2016, a CPICIBER ouviu as idealizadoras do Think Olga, Juliana de Faria, Maíra Liguori e Luíse Bello. O trio apresentou o trabalho do coletivo em campanhas como o Chega de Fiu Fiu e #PrimeiroAssédio, onde fizeram mobilizações online muito efetivas para trazer o tema do assédio para a mídia e o debate público no Brasil.
Maíra Liguori, que falou especificamente sobre as campanhas contra assédio praticado online, elencou os principais problemas no combate ao crime: a falta de informação para as vítimas de como proceder frente a tais abusos e o despreparo dos órgãos públicos responsáveis por defendê-la em lidar com assédio e violência de gênero. Ela também pediu mais medidas de educação, que ataquem a causa da agressão, e não a consequência: “antes de nós irmos lá e punirmos o agressor, vamos provocar nele uma reflexão sobre a agressão que ele está praticando”.
Relatório final: vigilância e remoção de conteúdo
Na publicação do relatório, a sub-relatoria foi renomeada para “sub-relatoria de crimes contra a honra e outras injúrias”, e mesmo diante da falta de argumentação substancial nas audiências, foram feitas propostas de lei com o intuito de combater tais crimes.
Acesso ao endereço IP e dados cadastrais de usuários
O anonimato foi, sem dúvida, o grande vilão na CPI dos Crimes Cibernéticos. A Constituição brasileira, em seu art. 5º, veda o anonimato no contexto da liberdade de expressão, mas não há um consenso sobre o que esta proibição significa no meio digital, ainda assim, esta vedação tem sido utilizada como uma grande barreira para uma discussão substancial sobre a importância do anonimato online.
Uma seção inteira do relatório final da CPI dedica-se a conferir se provedores de e-mail populares — Gmail, Hotmail e Yahoo! — pediam identificação na criação de novas contas. Assim justifica o relator:
“Com uma conta de e-mail válida compram-se produtos, ativam-se cadastros em redes sociais e habilitam-se aplicativos. Neste contexto, uma identidade virtual é até mais importante do que uma carteira de identidade. Quando analisados os crimes cibernéticos, muitas vezes encontram-se perfis falsos ou inválidos, o que dificulta, chegando a impossibilitar em inúmeros casos, a investigação criminal e a punição dos culpados.”
Como solução para este problema, foi proposto um Projeto de Lei para tornar inquestionável e imediato o acesso aos dados cadastrais por policiais e pelo Ministério Público. O PL, que pedia a “equiparação do endereço IP do usuário a dado cadastral” para dar “maior celeridade ao processo investigativo”, permitiria na prática que qualquer delegado da Polícia Civil (ou o Ministério Público) requisitasse dados cadastrais e endereços IP de usuários (e, consequentemente, localizá-los e identificá-los) sem precisar da avaliação de um juiz.
Nós da Coding Rights, junto com o IBIDEM e o Intervozes, publicamos uma nota técnica dirigida aos parlamentares com nossas posições a respeito do relatório. Sobre o acesso a endereços IP e dados cadastrais, afirmamos:
A permissão de qualquer acesso a dados pessoais de cidadãos sem ordem judicial não tem paralelo em legislações de países democráticos […] Direitos humanos não podem ser fragilizados a pretexto de atender à celeridade de uma investigação, por um procedimento que, na prática, pode significar uma porta aberta a arbitrariedades e a violações de direitos.
Nos preocupou especialmente o mau uso desta ferramenta por policiais. Assim como em diversos setores do poder público, a Polícia Civil brasileira possui diversos casos documentados de corrupção e o tráfico de influência. Como exemplificamos em nossa nota técnica:
Há poucos meses o inspetor-chefe da Corregedoria da Polícia Civil foi afastado do cargo por envolvimento “em acusações de favorecimento e tráfico de influência”, acusações que enfrenta junto a seis corregedores, segundo matéria da Agência Brasil. Um vídeo em matéria do Estadão mostra dois policiais civis fugindo de promotores que iriam prendê-los no DEIC/SP sob acusação de receber propina em troca de vista grossa; é possível que a própria corregedoria, convocada pelos promotores para acompanhá-los, tenha avisado os policiais.
De acordo com dados da Ouvidoria de Polícia de São Paulo, entre 1998 e 2014 houve 591 delegados investigados a partir de denúncias na Ouvidoria, que resultaram em 144 punições; houve também 10 investigações contra “agentes de telecomunicações”, com 4 policiais punidos. Sem desmerecer o importante trabalho de agentes policiais honestos, conceder acesso a dados sem ordem judicial, como o endereço IP no caso do Projeto de Lei sendo proposto, irá fatalmente gerar abusos.
Após forte mobilização da sociedade civil e de milhares indivíduos dentro e fora do país, intensos debates e duas revisões do relatório, o PL foi retirado do texto, mas permaneceu a posição favorável a essa forma de lidar com o crime: o relatório alega explicitamente que o “discurso de ódio” e abusos similares (na terminologia da Comissão, “conteúdos atentatórios contra a honra”) justificam a necessidade de se retirar juízes da equação, logo após afirmar que nenhuma vítima convidada compareceu: “Entendemos que é necessário encontrar formas para a proteção a cidadãos comuns de ataques pessoais pela internet (tais como ameaças, e cyberbulling) sem a necessidade de acionar a justiça. O Parlamento deve dar uma resposta à excessiva judicialização de direitos”.
Embora a Comissao tenha retirado o PL do relatório, um outro projeto parecido veio do Senado e tramita na Câmara como PL nº 5074/2016. Este PL permite à delegados de policia e membros do Ministério Público a requisição, sem ordem judicial, de dados cadastrais (mas não endereços IP). O próprio relatório o menciona, ainda como Projeto de Lei do Senado nº 730, embora de forma contida e afirmando que “a recomendação aqui expressa não significa que estamos propondo sua aprovação, apenas que reconhecemos a importância da matéria e a necessidade de posicionamento do Parlamento brasileiro”.
Aberturas para a censura: retirada de conteúdo queria “proteger a honra”
Outro Projeto de Lei criado pela sub-relatoria de “crimes contra a honra e outras injúrias” foi o PL 5203/2016. Em sua primeira versão no relatório da CPICIBER, ele era complementar a um segundo PL que determinava que os provedores de aplicação (como redes sociais, blogs, e outros sites) deveriam retirar conteúdos que “atentem contra a honra de maneira acintosa” em até 48h após notificação da vítima. Novamente, a ausência de ordem judicial e o fato de que o julgamente sobre qual conteúdo é ofensivo ou não ficaria a cargo de provedores de aplicação, em sua maioria pertencentes a um contexto cultural distinto do brasileiro, com histórico de erros em tal tipo de avaliação, deu margem a muitas críticas à proposta.
Como foi registrado no Câmara Notícias, esse PL “recebeu críticas de diversas entidades de defesa dos direitos dos usuários de internet” devido ao risco de “inibir a liberdade de expressão e gerar censura“, e foi removido já na segunda versão do relatório.
Algumas outras propostas polêmicas a esse PL também foram retiradas na terceira versão do relatório, como foi o caso da previsão que, visando proteger direito autoral, dispunha que além de conteúdos que representassem cópias integrais de conteúdo removido por ordem judicial, também deveriam ser removidos os conteúdos que tenham “parte majoritária que reproduza a infração decorrente do conteúdo removido por ordem judicial”. A subjetividade de tal afirmação (não é possível automatizar esse trabalho sem falsos negativos) levaria a um cenário onde plataformas que hospedam conteúdo dos(as) usuários(as) teriam novamente que fazer o papel de juiz, que não lhes cabe, para decidir se uma quantidade crescente de conteúdo é ou não parte majoritária de alguma outra obra.
O texto final da proposta, que tramita na Câmara dos Deputados como PL nº 5203/2016, é sem dúvida muito mais equilibrado que a primeira versão. No entanto, acabou se tornando apenas uma ferramenta para a indústria do direito autoral, além de uma arma para censurar críticas, em vez de alcançar uma solução balanceada para empoderar vítimas e diminuir os crimes de ódio e contra a honra.
Conclui-se pela experiência brasileira com a CPICiber, que os debates políticos no legislativo sobre como lidar com a grave questão dos discursos ofensivos, os chamados “discursos de ódio”, acabaram descarrilhando. Os resultados foram: propostas que visaram unicamente atender a interesses da indústria, como o caso do reforço em previsões do direito autoral, que nem eram o foco principal desta CPI; propostas que acabaram por prejudicar direitos, como o direito à privacidade e liberdade de expressão de todos os usuários da internet, e passou longe de tentar lidar com a questão central que seria pensar em formas efetivas de como proteger as vítimas deste tipo de discurso e evitar que eles continuem ocorrendo. Se ao menos a CPI tivesse ouvido cidadãos que de fato sofreram com esse problema, ou dado a devida atenção àquelas que lá compareceram, seriam propostos PLs que ao menos tentassem lidar com o despreparo dos órgãos públicos responsáveis por lidar com esse tipo de situação.
Experiências assim indicam que há de se tomar cuidado quando a narrativa de discurso de ódio é utilizada pelo legislativo apenas para manter o status quo nas assimetrias de poder, ou pior, apenas abrir espaço para mais censura e monitoramento, por vezes, justamente daqueles grupos que, por serem disruptivos, são mais vulneráveis ao discurso ofensivo.
Tags: A resposta do setor público, boletim14, CPICIBER, Joana Varon, Lucas Teixeira
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