Tecnologias de Vigilância e Antivigilância
Cidades inteligentes e caixas-pretas
01/03/2016
Por Manu Fernández | #Boletim13
Em 2008, Robert Hollands já se perguntava no artigo “Will the real smart city please stand up?” onde de fato encontrar a cidade inteligente que começava a aparecer na linguagem corporativa e institucional. Aqueles eram os primórdios da fabricação da ideia de cidade inteligente (CI) como concretização do ideal de incorporação de uma nova gama de tecnologias digitais na cidade. Apenas algumas empresas pioneiras em revestir suas estratégias de marketing com uma áurea urbana haviam começado a usar esse termo, fagocitando, em paralelo, outras reivindicações ou propostas que buscavam aplicar uma camada de tecnologia digital a modelos de desenvolvimento urbano sustentável. Ainda estava por acontecer uma onda de atenção voltada para as cidades inteligentes, a qual teve papel fundamental no debate sobre políticas urbanas nos últimos anos.
Agora que podemos avaliar esse período de crescimento exponencial da atenção dada a esse tema, a pergunta sobre a existência real de uma cidade inteligente, tal qual foi difundido, poderia ter a mesma resposta. Não existe uma cidade inteligente da forma como ela foi apresentada no discurso instituído e dominante nos últimos anos. A cidade inteligente é um conceito amorfo e conscientemente ambíguo, que teve uma trajetória mais discursiva do que prática, pelo menos em comparação com a quantidade de notícias, comunicados de imprensa, relatórios e eventos que protagonizou. Essa falta de realização prática não impede, todavia, o reconhecimento de sua influência na agenda das políticas urbanas que, de uma forma ou de outra, foram vistas como se nelas estivesse instalada uma concepção particular do significado da esfera digital na cidade e do modelo de inovação urbana.
Da mesma forma, nem todo o esforço discursivo realizado foi capaz de oferecer um consenso básico e compartilhado pelas diferentes áreas do conhecimento relacionadas à cidade ou pelos diferentes contextos urbanos, ou mesmo um relato coerente e compreensível para os cidadãos. Deparamo-nos com uma proposta de um novo modelo de desenvolvimento urbano como continuação e evolução dos termos anteriormente acolhidos com igual entusiasmo (a cidade criativa, a cidade sustentável etc.) em uma longa história de utopias e modelos teóricos urbanos. Junto a ele, o ambiente predominante de espetacularização acrítica em que se desenvolve o contexto atual de adoção de inovações digitais tem sido crucial no momento de explicar o surgimento, a consolidação e a influência de um termo que, há apenas alguns anos, era tangencial, especulativo e residual tanto na esfera acadêmica quanto na midiática e na institucional.
A vida cotidiana é cada vez mais constituída de interações crescentes com objetos, plataformas e dispositivos conectados, muitas vezes de forma inconsciente (por exemplo, o rastro digital que deixamos no sistema de aluguel de bicicletas públicas, a nossa imagem captada por uma câmera de vigilância ou a passagem de um ônibus urbano identificada por um sensor) e outras vezes de forma mais consciente (a procura de um lugar usando a navegação GPS, a conexão com uma rede sem fio em uma praça, o pagamento do estacionamento etc.). “Aqueles que não conseguem perceber a rede não podem atuar de forma eficaz dentro dela e ficam impotentes“, destaca o artista James Briddle, indicando-nos uma das características mais importantes dessa realidade digital e o enorme desafio que ela implica em termos de cidadania. Desde termostatos em nossas paredes até sensores no asfalto que pisamos, a vida diária vai sendo povoada com dispositivos que organizam ou intermedeiam nossas decisões ou mesmo tomam decisões por nós de forma furtiva e, em muitas situações, independentemente da nossa vontade. De câmeras de reconhecimento facial nas esquinas das nossas ruas até postes que detectam a presença de pessoas na calçada, os dispositivos de controle automático das funções dos serviços urbanos vão se tornando parte da paisagem urbana. De mecanismos que capturam continuamente as condições ambientais até aplicativos que registram a nossa posição.
A invisibilidade é uma característica das tecnologias que estamos abordando e uma experiência fluida, sem atritos, é o que oferece a cidade inteligente como a concretização definitiva da vida na cidade conectada. Até hoje, todas as grandes transformações técnicas da humanidade foram protagonizadas por instrumentos materiais fisicamente tangíveis e até mesmo pesados. Talvez o telefone ou o telégrafo cheguem perto dessa invisibilidade, mas, em última análise, sempre estiveram associados aos seus terminais, escritórios e linhas de comunicação e, de qualquer modo, seu funcionamento é relativamente simples em comparação com a rede extremamente complexa de infraestruturas, protocolos, software etc. em que a rede se apoia. Hoje temos os dispositivos conectados — tendo o smartphone como símbolo —, mas a transformação fundamental está na conexão sem fio e na transferência de informações por eles geradas. Dados, algoritmos e códigos são produtos e resultados da inteligência oferecida pelos mecanismos materiais que usamos para nos conectarmos. Dessa forma, o celular inteligente tornou-se o exemplo perfeito de como um objeto totalmente visível e material, próprio da vida conectada, é, no entanto, o resultado funcional de um sistema de redes complexas e infraestruturas (centros de dados, servidores etc.) invisíveis e desconhecidas, mas radicalmente materiais e físicas, que oferecem suporte ao mesmo. Essa perda de conexão sensorial com a base física da rede poderia explicar nossa dificuldade em compreender as profundas consequências da mudança tecnológica que vivemos e faz com que, no dia a dia, a experiência digital esteja mais próxima do inconsciente e da sensação de termos em nossas mãos uma tecnologia mágica, em relação à qual só temos capacidade de compreender suas consequências, seu funcionamento básico e as prerrogativas que concedemos em troca do seu uso.
Podemos ver os sensores instalados nos postes de iluminação pública, pagar o estacionamento ao aproximarmos nossos cartões de crédito, acompanhar nosso consumo de energia em tempo real e até pelo menos entender em que consiste a plataforma de integração de dados que nosso município está desenvolvendo como sistema operacional. Podemos baixar um aplicativo em nosso celular, aceitar a política de cookies de um site da web ou concordar com uma determinada política de uso de dados pessoais de uma empresa por meio de um formulário web. Porém, mesmo que possamos tocar esses objetos ou executar essas ações conscientemente, seu significado mais profundo em termos de quem faz o quê com os nossos dados, que controle temos sobre as imagens de videovigilância às quais estamos sujeitos ou por que o mecanismo de busca de informações municipais nos oferece alguns dados e não outros continua sendo uma caixa-preta. Muito mais obscuro ainda é compreender que os nossos dados pessoais encontram-se armazenados em servidores e centros de dados na costa leste dos Estados Unidos, que o projeto desse sistema operacional da nossa cidade tem seu cérebro (servidor) na Califórnia ou quem é o dono dos cabos submarinos que nos conectam à rede global. Por isso, apesar de termos descoberto recentemente que a nossa sociedade e as nossas vidas estão sujeitas aos sistemas de espionagem maciça mais complexos da história, a nossa sensibilidade para as questões de privacidade ainda é muito baixa.
Devido precisamente ao caráter invasivo e invisível que destacamos, as tecnologias das quais dispomos atualmente possuem a capacidade de nos maravilhar, de se instalar comodamente em nossas rotinas e de serem aceitas sem maior questionamento além da conveniência que podem nos proporcionar em nossas tarefas diárias. A cidade inteligente oferece conforto e um trânsito pacífico no fluxo vital digital. Porém, apesar do enorme e complexo desafio da privacidade e da segurança se apresentar como mais significativo e sensível no nível pessoal, muitos outros desafios surgem no horizonte da esfera pública e comunitária. Esses desafios — na medida em que são plasmados por meio do imaginário da cidade inteligente nas formas de governo, nos arranjos institucionais a partir dos quais se revelam as infraestruturas básicas da cidade e os novos serviços derivados da esfera digital ou nas expectativas sobre os limites da democracia — criam a necessidade de se questionar as premissas implícitas nessas tecnologias. Sem entrar em detalhes adicionais que não correspondem a este texto, a esfera digital — da qual a cidade inteligente faz parte como proposta de organização social nas cidades — nos torna pouco capazes de compreender e reagir ao seu significado íntimo, pelo menos enquanto não nos opusermos de forma consciente. Apesar disso, a cidade inteligente surgiu como uma explicação dominante para dar sentido a esse cenário.
Não se trata apenas de dispositivos como celulares, cafeteiras e lixeiras, mas de outros equipamentos sobre os quais repousa a nossa própria existência (desde os carros até os sistemas de aquecimento em nossas casas, os sistemas de vigilância baseados em drones etc.), que também adquirem capacidades de comunicação e de tomar decisões quase automáticas. Os algoritmos possivelmente decidirão questões que podem colocar em perigo o nosso bem-estar pessoal, nossa segurança física, nossos direitos como cidadãos e nosso acesso a serviços. Eles o farão não apenas porque o projeto técnico dos algoritmos e das funcionalidades desses dispositivos o permitem, mas porque serão parte de um conjunto social e técnico que definirá os limites do bem-estar, da responsabilidade e da segurança. Eles o farão de forma automática e sistemática, a menos que sejamos capazes de construir um conjunto alternativo, e atuarão sobre questões não triviais. Descobrir que o Facebook manipulou seus usuários psicologicamente durante uns meses por meio de uma experiência de engenharia social para fins comerciais pode vir a ser relativamente inócuo para alguns. Mas, por meio dessas renúncias, podemos chegar a construir uma grande teia de renúncias onde também resultem inócuos os comportamentos dos sistemas inteligentes que hoje poderiam nos parecer antidemocráticos, autoritários ou fisicamente danosos. A cidade inteligente nos convida a confiar em sistemas que demonstraram ser pouco dignos de nossa confiança como indivíduos ou como sociedade.
À medida que as tecnologias se tornam mais complexas, elas ficam mais sujeitas a serem constituídas e gerenciadas como caixas-pretas. Na aparente transparência das informações suposta pela vida digital, os rastros que deixamos são incorporados a espaços desconhecidos e inacessíveis a qualquer de nós. É a partir desses espaços que são geradas as novas formas de governar, tanto na esfera pública como na privada (pensemos em gigantes, como o Facebook e o Google, e na capacidade que eles têm de manipular nossa experiência digital por meio da exploração dos dados dos usuários usando algoritmos indecifráveis e fora da averiguação pública, sempre com a justificativa de oferecer uma experiência de usuário melhor). O verdadeiro desafio está além da disponibilização dos dados nos algoritmos e nos códigos que tornam os dados algo funcional, sobre os quais temos pouco controle ou nem sequer noção de sua existência.
A caixa-preta coloca os cidadãos na condição de usuários e, como tal, meros espectadores do que ela faz. O smartphone, objeto que passou a ser onipresente em nossas vidas e por meio do qual uma quantidade crescente de atividades cotidianas estão midiatizadas, representa perfeitamente esse problema. Apesar de sua materialidade e de sua presença constante, a infraestrutura que serve de base para seu funcionamento está oculta. Nesse cenário, merece destaque o esforço que está sendo feito por certas áreas da prática do desenho e da computação para visibilizar essa realidade.
A crescente dependência do software e das regras algorítmicas em todos os âmbitos da vida nos situa frente a realidades que estavam escondidas nas versões mais otimistas da leitura da cidade inteligente. Episódios como a descoberta da fraude massiva da Volkswagen, que inseriu um código para manipular a inspeção de suas emissões, nos revelam a magnitude dessa dependência e a falta de ferramentas de controle de reguladores públicos e em defesa dos consumidores.
Este texto foi extraído da tese de doutorado “La smart city como imaginario-socio tecnológico. La construcción de la utopía urbana digital”, defendida em dezembro de 2015 por Manu Fernández.
Manu Fernández é doutor pela UPV/EHU (2015) com a tese “La smart city como imaginario socio-tecnológico”. Investigador e consultor de políticas urbanas; ao longo de sua trajetória profissional esteve envolvido em projetos relacionados à sustentabilidade local e à análise das economias urbanas. Atualmente, ele trabalha como profissional autônomo em sua agência Human Scale City em três áreas: as estratégias de urbanismo adaptável e de ativação de espaços públicos, a interseção entre o digital e o social na vida urbana a partir de uma perspectiva cidadã e, por fim, o impulso de projetos de dinamização econômica nas cidades. Autor do blog “Ciudades a Escala Humana“.
@manufernandez
Tags: Boletim13, cidades inteligentes, Manu Fernandez
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