Privacidade e Políticas Públicas
Vigilância massiva no Peru: Lei Stalker
09/11/2015
Por Carlos Argote Guerrero | #Boletim12
Há poucos meses, o governo peruano buscou somar-se à lista de governos que tentam, ao redor do mundo, promulgar leis que tornem oficiais certos mecanismos de vigilância em massa de seus cidadãos. Em seu último ano de mandato, em meio a diversas crises e críticas pelo aumento da delinquência, o presidente Ollanta Humala solicitou poderes legislativos ao Congresso para que pudesse passar leis sem passar pelo parlamento. Após um longo debate, o Congresso aceitou lhe outorgar 90 dias para que pudesse realizar esse trabalho.
Dentro deste contexto, em 27 de julho se promulgou o Decreto Legislativo 1182, logo conhecida como Lei Stalker ou Lei do Assediador, sem nenhum debate prévio e em pleno feriado nacional. Esta norma permitiu que a polícia acesso em tempo real e sem mandato judicial as informações de geolocalização de qualquer dispositivo associado a uma linha de telefonia móvel, e adicionalmente criou a obrigação de que as empresas de telecomunicações conservem os dados de tráfego de seus usuários por um período de três (3) anos.
Da noite para o dia, mais de 30 milhões de peruanos despertamos sem saber que nossa inocência não era mais algo que as autoridades deveriam presumir. Desde este dia, todos os telefones que tínhamos nos bolsos se converteram em dispositivos a serviço da segurança nacional e nossas informações passaram a ser registradas. Apesar dos sérios questionamentos que tem recebido desde então, hoje esta lei segue vigente e continua ameaçando os direitos de todos os cidadãos.
O que diz esta lei exatamente?
O Decreto Legislativo 1182 autoriza a polícia a acessar a geolocalização de qualquer usuário de telecomunicações do país, sempre que se reúnam três condições: (a) quando exista flagrante delito, (b) quando se investigue um delito sancionado com mais de quatro (4) anos de prisão, e (c) o acesso aos dados de geolocalização seja estritamente necessário. Contudo, estes requisitos não necessitam ser avaliados nem respaldados por ninguém e somente 72 horas depois um juiz pode aprovar ou deter a medida.
A lei também exige que todas as empresas de telecomunicações guardem os dados de geolocalização, tráfego de chamadas, frequẽncia, navegação e derivados de todos os seus usuários e que os conservem por um prazo mínimo de três (3) anos. Desta maneira, as autoridades poderão usar esta base de dados para investigar a comissão de delitos ou a vinculação de pessoas com organizações delitivas. Se no primeiro caso a violação à privacidade e outros direitos podia afetar potencialmente qualquer um, no mecanismo de retenção de dados a medida afeta efetivamente a todos por igual, sejam inocentes ou culpados.
Seguindo a mesma cartilha de outros países, o governo peruano tem buscado justificar a Lei Stalker com a necessidade de combater nossa maior ameaça local: a delinquência. Ele tem feito isso com ênfase no argumento de que os mecanismos atuais atrapalham as investigações e que tornar certos direitos mais vulneráveis é necessário para garantir a segurança. Ou seja, além de admitir tacitamente a sua própria ineficiência, depositam todo o custo da luta contra o crime sobre o elo mais fraco: os cidadãos.
Com suas particularidades, a Lei Stalker só faz repetir o modus operandi de outro tipo de iniciativas similares em todo o mundo. Nesta forma da “Era de Ouro da Vigilância em Massa”, podemos encontrar dezenas de exemplos sendo alguns dos mais próximos a falida “Lei Pyraweb” no Paraguai ou a lei de retenção de dados vigente na Colômbia, além da revelação sobre os órgãos governamentais que usaram o software da Hacking Team com fins de espionagem.
Como tem sido recebida?
Após a surpresa inicial, diferentes organizações da sociedade civil nacional e internacional, especialistas em áreas relacionadas e inclusive órgãos do governo têm expressado suas posições a favor ou contra a Lei Stalker. Nós da ONG Hiperderecho temos coberto constantemente esta norma, buscando explicar a natureza dos mecanismos que ela impõe e os perigos potenciais que existem para os direitos de todas as pessoas. Além disso, há atualmente uma campanha para pedir aos congressistas da mesa da Comissão de Constituição que revisem a lei no exercício de seus poderes de suas funções de controle político. Adicionalmente, redigimos um informe legal sobre os problemas da norma que pode ser encontrado na nossa página web.Embora no nível das organizações da sociedade civil a resposta tenha sido bastante uniforme na hora de exigir o aperfeiçoamento dos mecanismos da lei, é curioso notar que as respostas dos organismos estatais tenham sido díspares. Por um lado, a Defensoría del Pueblo ofereceu seu apoio com algumas observações, ao mesmo tempo o Ministério Público segue avaliando a norma pois sua existência afeta o trabalho que esta entidade vem realizando.
Outro pronunciamento importante é o do Relator Especial para Liberdade de Expressão da OEA, que enviou uma carta ao Estado peruano pedindo mais informações sobre as condições em que se aprovou o Decreto Legislativo 1182 e lembrando que este tipo de medidas deve contar com uma série de salvaguardas para evitar seu uso indiscriminado e o desvio de seus objetivos.
Finalmente, há pouco foi apresentado um projeto de lei que busca derrogar a Lei Stalker e que acatou as principais críticas que fazem a ele, propondo a implantação de juízes que possam autorizar as intervenções em tempo real, para garantir o respeito aos direitos e garantias dos afetados. Não obstante, ainda permanece o mandato de retenção de dados.
O que nos espera daqui em diante?
Talvez o mais difícil na hora de avaliar que tipo de lei é que por baixo se encontra um debate antigo, mas que se torna muito mais necessário na última década: o quanto estamos dispostos a entregar ao governo para estarmos seguros? Podemos confiar que uma vez passado o perigo, os governos entregarão de boa vontade as ferramentas que lhes demos para nos proteger?
Antes de implementar medidas de vigilância é necessário abrir o debate para a sociedade. Não se trata de defender delinquentes ou ser paranóico; se trata de defender o princípio de que os assuntos públicos se discutem em público. Especialmente quando o tema em discussão consiste em outorgar a terceiros o controle ou a supervisão sobre o que fazemos ou podemos fazer em nossos espaços privados.
Tags: boletim12, carlos guerrero argote, geolocalização, ley stalker, peru, retenção de dados
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